São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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OS BRASILEIROS SÃO FELIZES?

Nossa felicidade é triste como nenhuma outra

CHICO MATTOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ah, como somos felizes. Ontem fui comprar pão e, ainda zonzo de sono, recebi na cara o sorriso atirado pela atendente. No caixa, o dono da padaria fez alguma referência bem-humorada ao tempo chuvoso e, ao dar as moedas do troco, desejou-me um bom dia cheio de sinceridade e gentileza.
Ao chegar em casa, pus o saquinho de pães em cima da mesa e, quando vi, ele também sorria para mim, espalhando pela sala a frase acolhedora: "Agradecemos sua preferência".
Somos muito felizes, não resta a menor dúvida, e quando alguém, num evidente ato de leso-patriotismo, começa a achar que não é bem assim, eis que surge uma nova pesquisa que comprova, através dos mais apurados métodos científicos, nossa esmagadora supremacia no ramo da felicidade.
Não é questão de saber por que somos felizes -somos, e ponto, do mesmo jeito que as araras voam, os gambás fedem, e os bois ruminam. É da nossa constituição física, do nosso organismo: a felicidade, e só ela, nos distingue dos outros povos, como uma marca de nascença.
É claro que as coisas não são bem assim -mas é assim que parecem ser. Num primeiro olhar, a impressão que se tem é que nossa felicidade, além de irrestrita, é una e indivisível.
Ao contrário dos esquimós, que são capazes de enxergar dezenas de tons na cor branca, nós, aqui, só conseguimos conceber um único modelo de felicidade, sem qualquer tipo de gradação ou matiz. Pairando sobre nossas cabeças, ela se mistura com tudo, confundindo-se com alegria, com entusiasmo, com irreverência, com histeria, com tudo aquilo que pode ser encontrado num comercial de cerveja ou num outdoor de roupas íntimas -e o que se vê, no fim das contas, é a formação de uma espécie total de satisfação, avassaladora, ofuscante, quase mortal.
O fato de o brasileiro se declarar tão feliz pode querer dizer muita coisa sobre nós mesmos -menos, é claro, se nossa felicidade é verdadeira.
Pode significar, por exemplo, que somos mentirosos ou ingênuos ou conformistas ou míopes ou falastrões ou -por que não?- sinceros e honestos e realmente satisfeitos com a vida que levamos. É difícil encontrar a interpretação correta para isso.
O que é possível, sempre, é escutar os gritos do nosso contentamento. Nossa felicidade berra. E está só. E quer atenção, como uma criancinha mimada, e não seria surpresa nenhuma se, por baixo de tudo, ela escondesse uma espécie muito particular de melancolia. Nossa felicidade, eu desconfio, é triste como nenhuma outra.


Chico Mattoso, 26, é escritor e edita a revista "Ácaro"

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