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OS BRASILEIROS SÃO FELIZES?
Nossa felicidade é triste como nenhuma outra
CHICO MATTOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ah, como somos felizes. Ontem fui comprar pão e, ainda
zonzo de sono, recebi na cara o
sorriso atirado pela atendente. No
caixa, o dono da padaria fez alguma referência bem-humorada ao
tempo chuvoso e, ao dar as moedas do troco, desejou-me um
bom dia cheio de sinceridade e
gentileza.
Ao chegar em casa, pus o saquinho de pães em cima da mesa e,
quando vi, ele também sorria para mim, espalhando pela sala a
frase acolhedora: "Agradecemos
sua preferência".
Somos muito felizes, não resta a
menor dúvida, e quando alguém,
num evidente ato de leso-patriotismo, começa a achar que não é
bem assim, eis que surge uma nova pesquisa que comprova, através dos mais apurados métodos
científicos, nossa esmagadora supremacia no ramo da felicidade.
Não é questão de saber por que
somos felizes -somos, e ponto,
do mesmo jeito que as araras
voam, os gambás fedem, e os bois
ruminam. É da nossa constituição
física, do nosso organismo: a felicidade, e só ela, nos distingue dos
outros povos, como uma marca
de nascença.
É claro que as coisas não são
bem assim -mas é assim que parecem ser. Num primeiro olhar, a
impressão que se tem é que nossa
felicidade, além de irrestrita, é una
e indivisível.
Ao contrário dos esquimós, que
são capazes de enxergar dezenas
de tons na cor branca, nós, aqui,
só conseguimos conceber um
único modelo de felicidade, sem
qualquer tipo de gradação ou matiz. Pairando sobre nossas cabeças, ela se mistura com tudo, confundindo-se com alegria, com entusiasmo, com irreverência, com
histeria, com tudo aquilo que pode ser encontrado num comercial
de cerveja ou num outdoor de
roupas íntimas -e o que se vê, no
fim das contas, é a formação de
uma espécie total de satisfação,
avassaladora, ofuscante, quase
mortal.
O fato de o brasileiro se declarar
tão feliz pode querer dizer muita
coisa sobre nós mesmos -menos, é claro, se nossa felicidade é
verdadeira.
Pode significar, por exemplo,
que somos mentirosos ou ingênuos ou conformistas ou míopes
ou falastrões ou -por que
não?- sinceros e honestos e realmente satisfeitos com a vida que
levamos. É difícil encontrar a interpretação correta para isso.
O que é possível, sempre, é escutar os gritos do nosso contentamento. Nossa felicidade berra. E
está só. E quer atenção, como
uma criancinha mimada, e não
seria surpresa nenhuma se, por
baixo de tudo, ela escondesse
uma espécie muito particular de
melancolia. Nossa felicidade, eu
desconfio, é triste como nenhuma
outra.
Chico Mattoso, 26, é escritor e edita a
revista "Ácaro"
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