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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Vida e morte na globalização

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

A vida anda pela hora da morte neste mundão globalizado. Eleito no "tapetão" da Suprema Corte depois de perder no voto popular, Bush filho transformou em obsessão a "ameaça iraquiana". Ela estaria escondida sob a forma de armas químicas, atômicas e biológicas nos porões dos palácios de Saddam Hussein. De nada valeram os relatórios dos inspetores de armas que negavam fundamento para a decisão de atacar. Muito menos foi eficaz o bloqueio do Conselho de Segurança às pretensões anglo-americanas de legitimar a guerra.
Esopo, o contador de fábulas, havia percebido, séculos atrás, ao narrar a conhecida história do lobo e do cordeiro: quando os poderosos querem sacrificar os mais débeis, pouco importa a verdade. Os Estados Unidos e a Inglaterra estão dispostos a usar seu poderio militar para tomar conta do Iraque e fim de papo. Até mesmo os mais crédulos já sabem que a pancadaria anglo-americana (chega dessa conversa de aliados) não vai servir para difundir a democracia nem para disseminar as virtudes da civilização ocidental. Por isso mísseis Tomahawk e outros menos votados estão sendo disparados sobre os infelizes iraquianos que desafiadoramente insistem em frequentar os mercados de Bagdá para fazer compras.
Os meios de comunicação informam que mais de 70% do povo americano apóia a decisão do presidente Bush e de seus assessores de ultradireita. Os debates no Congresso e o clima entre a maioria da população são incrivelmente "patrióticos", louvando a coragem dos bravos rapazes e moças que levam adiante mais esta guerra.
Esses episódios de ferocidade quase unânime e de patriotismo intolerante e autocongratulatório não são novos nos Estados Unidos. Pertencem a uma sólida tradição de caça às bruxas, como mostra magistralmente Arthur Miller, o grande dramaturgo, na peça "As Feiticeiras de Salem". O avesso da cultura puritana e salvacionista é muito feio, medonho. Quem viveu lembra: no início dos anos 50, o senador McCarthy empreendeu uma campanha de acusação e perseguição a supostos comunistas infiltrados na mídia, nas universidades e no meio artístico.
A intolerância unânime torna ainda mais admirável a resistência dos americanos que se opõem à guerra. Eles estão defendendo bravamente os valores democráticos e republicanos que, sem dúvida, são constitutivos de sua sociedade. É preciso ter muita força moral para contraditar os convictos do "destino manifesto", expresso na frase de Condoleezza Rice aos universitários de Michigan tempos atrás: o que importa é o poder americano.
A novidade é que hoje os caçadores de bruxas de Washington, como a senhora Rice, não se envergonham de misturar conselhos políticos com negócios escusos. Não se sabe ao certo se o gabinete de Bush filho é a cúspide do Poder Executivo ou um escritório de corretagem. Isso só prova que o destino da humanidade e do mundo está nas mãos de dois grupos perigosíssimos: uma minoria de calculistas que, entre os seus métodos de sobrevivência política, inclui o assassinato de inocentes e uma minoria de gente estúpida disposta a aplaudir e a legitimar as malfeitorias dos espertalhões.
Foram muitas as reações. A França, a Rússia e a China, potências nucleares que têm assento no Conselho de Segurança da ONU, condenaram com veemência a ação de ingleses e de americanos. Isto significa que a brutalidade de Bush e de Blair não deixará de ter consequências políticas que podem alterar o curso das relações internacionais. Há uma evidente saturação das reiteradas manifestações de prepotência dos Estados Unidos.
Essas agressões executadas contra os países mais fracos e desferidas em nome da democracia e da liberdade são, na verdade, exatamente o contrário disso. As decisões têm sido tomadas sempre devido aos interesses nacionais quando não de grupos políticos ou mesmo de pessoas, como é o caso agora do presidente Bush.
Pode até ser assim, mas o reiterado uso da força e das mesquinhas razões nacionais ou particularistas pode dar maus resultados. O ex-presidente Ronald Reagan ficou conhecido, entre outras coisas, por ter declarado que a finada União Soviética era o "império do mal". No entanto o desaparecimento do demônio não parece ter diminuído o poder do inferno.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).

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