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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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LUÍS NASSIF

As profissões do meu tempo

Nesta semana fui a um restaurante relativamente sofisticado. Na parede havia um quadro onde estavam escritas a giz, e com letra caprichada, as novidades do cardápio. O cartaz me lembrou a maneira como o cine São Luiz de Poços de Caldas anunciava seus filmes. De manhã, na porta do cinema, aparecia o pintor, sujeito magro, alto e careca, e começava a pintar o nome do filme e do casal de atores principais. A gente ficava à distância, babando com o capricho com que bordava as letras: E-l-i-z-a-b-e-t-h T-a-y-l-o-r. As tabuletas, de ferro pesado, ficavam encostadas nos postes das principais esquinas da cidade.
Era uma das muitas profissões que foram tragadas pelo tempo, como tantas outras da minha infância. Ainda é possível achar o vendedor de pamonhas por aí. Nenhum, por certo, que se equiparasse ao Tião Pamonheiro e sua voz de congo. "Olha a pamonha, mio verde", era seu bordão.
Tinha o seu Marcondes, calista, que todo mês vinha cortar os calos dos pés de meu pai. Na rua Rio de Janeiro, quase esquina com a Assis (a principal da cidade), tinha um sapateiro, desses de fazer meia-sola e tudo. Só lá para meados dos anos 60 passou a vender sapatos industrializados.
Havia outras profissões que ainda resistem bravamente aos novos tempos, como os tintureiros. O nosso subia o morro de bicicleta, pegando as roupas nas casas. Era o Lazinho, emérito guitarrista. E de bicicleta andava também o seu Alexandre Xandó, nosso livreiro, que visitava as casas apresentando os últimos lançamentos de São Paulo. Gozado como a bicicleta era utilizada em Poços, ainda mais levando em conta ser cidade montanhosa.
Bordadeiras, havia aos montes, cada qual com um bordado ou crochê mais bonito que o outro. As mais famosas de Poços eram a dona Cota e a dona Maria Bordadeira, se não me engano.
A profissão de parteira era requisitadíssima. Minha parteira foi dona Júlia. A de minhas irmãs, dona Esther. Poços já tinha uma boa Santa Casa, mas parte das famílias queria ter os filhos em casa. Foi o caso da dona Tereza, mulher teimosa que nem algumas netas dela que eu conheço. De saúde frágil, recebera o conselho do dr. Rowilson de que não deveria se aventurar a ter filhos: arriscava-se a morrer ou ela ou a criança. Dona Tereza não só decidiu ter como fez questão de que fosse em casa. Nasci às sete da noite com mais de 20 pessoas na sala rezando. Os dois sobrevivemos galhardamente, dona Tereza a mais quatro partos.
A profissão de alfaiate era outra extremamente valorizada. Nem falo de meu avô paterno, que deixou Buenos Aires, passou por São João, mudou-se para Poços e montou uma pequena alfaiataria com meu tio mais velho antes de ser abatido por um derrame.
Na minha infância, o alfaiate mais solicitado era o seu Alexandre Pagin, nosso vizinho. Só para meados dos anos 60 apareceram a Ducal e a roupa industrializada. O único problema do seu Pagin -dizia minha mãe- é que sempre fazia calças para mim com uma perna mais curta. E sempre comigo. Só na adolescência minha mãe descobriu que, na verdade, a minha perna esquerda é que era mais curta do que a direita.
O lambe-lambe, o fotógrafo que andava com aquelas máquinas antigas que tinham uma caixa para ele colocar a cabeça e mirar a vítima, era e ainda é uma instituição municipal. O nosso era o pai do Humberto Beleza, meu colega de tiro-de-guerra.
E havia charreteiros aos montes, alguns, como o seu Laier, que conseguiram formar quatro filhos na faculdade, só com o seu trabalho. Ou o Felipão, esse mais antigo, dos idos dos anos 30, que tinha uma charrete especial para pegar as mocinhas e levar até o cassino. Se vivesse na época, a nossa ex-ministra Zélia Cardoso de Mello ia largar tudo só para desfilar em Poços na charrete do Felipão, que nem fez no Central Park, em Nova York.
Nem falo nada dos jagunços, povo brabo especializado em cobrar dívida de jogos, porque quando atingi a idade da compreensão eles já tinham aposentado suas garruchas e se tornado senhores pacatos. E muitos filhos deles nem sabem desse passado romântico dos pais.

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