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OPINIÃO ECONÔMICA
A invasão dos bárbaros
RUBENS RICUPERO
"O s bárbaros não vêm
mais do Cáucaso ou das
estepes da Ásia; eles moram agora nos bairros operários de nossas grandes cidades." Assim estigmatizava em 1831 o oficialista
"Journal des Débats" a revolta
dos "canuts", os tecelões de seda
de Lyon. O crime dos trabalhadores era pedir salário mínimo
acima dos miseráveis 18 tostões
que lhes pagavam por 15 horas
de trabalho. Michelet comentou
que a classe operária passava a
ser vista como o inimigo do interior, e sua ascensão, como a invasão dos bárbaros.
Será muito diferente a sensação das classes média e alta da
América Latina ao verem que as
massas já não "conhecem seu lugar" e querem ocupar o antes reservado às elites? A desigualdade
gera a diferença, e esta, a estranheza. Quanto mais diferentes
forem os do alto e do baixo da pirâmide, mais difícil é que se considerem membros de repúblicas
que invoquem como lema a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
Se na França de 130 anos atrás
essa distância era abismal, como
se vê em "Os Miseráveis", o que
dizer do "continente da desigualdade"? Que impressão podem
causar a eleição de um índio aymará na Bolívia, os movimentos
indígenas que ocupam estradas e
edifícios públicos no Equador, no
Peru, as ações violentas dos "piqueteros" argentinos, as invasões
do MST, as demonstrações de
força dos camisas vermelhas de
Chávez, as multidões mexicanas
que vão à praça pública para
apoiar López Obrador?
Basta olhar essas cenas na TV
para dar-se conta de que não são
"gente como uno", conforme diriam as aristocratas argentinas.
Não é apenas a roupa barata, a
aparência de desalinho, o estilo,
a voz, o modo de falar ou andar.
A cor dos rostos é outra, mais puxada ao cobre ou ao ébano, e, às
vezes, os chapéus das mulheres,
as crianças amarradas às costas,
os ponchos coloridos, tudo trai
uma cultura diversa, que se expressa em espanhol balbuciante,
em quéchua ou aymará.
Na Europa do século 19, ao menos falavam todos a mesma língua e eram de cor igual. Aqui, as
diferenças são muito maiores.
Além disso, na Revolução Industrial européia, a economia foi
aos poucos absorvendo o excesso
de mão-de-obra, ajudada pela
imigração para a América. Criaram-se condições para adoçar as
leis trabalhistas. A situação material e social só melhorou de forma gradual. O tempo necessário
para conter a impaciência das
massas foi assegurado por um
misto de repressão impiedosa e
de leis que limitavam enormemente o direito de voto. Muitos
países europeus somente chegaram ao sufrágio universal em
fins do século 19, e alguns apenas
na véspera da Guerra de 1914.
O que é sem precedentes na
América Latina é a súbita irrupção da democracia de massas e
do irrestrito sufrágio universal
em momento no qual a economia gera poucos empregos produtivos e a emigração encontra
barreiras crescentes. Não admira
que, em país após país, os periféricos começam a organizar-se e
eleger indivíduos que até podem
ser populistas, oportunistas, demagogos, mas não deixam de ter
o que falta aos partidos tradicionais: a capacidade de se comunicar com as massas excluídas, de
emprestar-lhes voz e voto.
A chegada dos bárbaros inaugura período de desestabilização
e medo, provavelmente longo.
Pouco antes da sangrenta revolução de 1848, Ozanam, o mais
lúcido intelectual católico democrata, fundador das conferências
vicentinas, propôs num artigo:
"Passemos aos bárbaros". Lembrava que, no fim do Império Romano, bispos e até papas preferiam as virtudes dos bárbaros à
corrupção e amolecimento dos
romanos da decadência. Não tiveram medo, foram aos bárbaros, converteram-nos e deram
novo vigor ao cristianismo.
Ozanam não foi ouvido. As
barricadas desencadearam o terror dos burgueses, que preferiram a ditadura de Napoleão 3º.
Quase 20 anos depois, a seara foi
novamente de sangue: em maio
de 1871, as barricadas estavam
de volta. Paris ardeu, e o Sena
corria entre duas muralhas de
fogo. Pereceram 20 mil "communards", 10 mil foram deportados,
e os bárbaros, pacificados.
E nós, como reagiremos aos
nossos bárbaros?
Rubens Ricupero, 69, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto
Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das
Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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