São Paulo, sexta-feira, 30 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

As dívidas despercebidas do Brasil

MORRIS GOLDSTEIN
PARA O "FINANCIAL TIMES"

O pacote de US$ 30 bilhões que o FMI (Fundo Monetário Internacional) concedeu para resgatar o Brasil suscita uma questão crucial: como um país que era caracterizado ainda recentemente como exemplar em termos de desempenho pode estar de novo à beira da crise financeira, depois de ter cumprido fielmente seu mais recente acordo com o FMI?
Será que a crise brasileira significa que existe alguma coisa de terrivelmente errada com o sistema financeiro internacional? Fernando Henrique Cardoso recentemente ofereceu sua resposta: "Raramente os mercados se comportaram de maneira tão abertamente contrária aos seus interesses, ao ignorar os fundamentos e criar falsas expectativas".
Existe mesmo algo de errado. Mas não aquilo que FHC tem em mente. O Brasil decaiu a uma crise porque suas autoridades, os mercados financeiros privados e o FMI não prestaram atenção suficiente ao problema crescente da dívida nacional.
Ao contrário do que se ouve frequentemente, alguns dos fundamentos brasileiros mais importantes se deterioraram ao longo dos últimos anos, e o ambiente externo que o país enfrenta também se deteriorou.
O mais recente pacote de resgate também demonstra que, a despeito de toda sua retórica quanto a suspender o financiamento oficial em larga escala quando ele estiver sendo usado para escorar uma posição de dívida insustentável, o FMI e os principais países industrializados não estão dispostos a fazê-lo, quando a coisa aperta para as maiores economias emergentes.
É certo que a taxa de câmbio competitiva e de livre flutuação no Brasil, sua estrutura de política monetária baseada em metas para a inflação, seu superávit orçamentário primário e seus bancos protegidos colocam o país em posição melhor do que a ocupada pela Argentina antes de sua crise recente. Mas o histórico brasileiro quanto a algumas outras dimensões econômicas importantes vem sendo horrendo.

Dívida pública
Em 1994, a dívida pública como proporção do PIB (Produto Interno Bruto) era de 30%. Hoje, chega ao dobro e isso a despeito de receitas de privatização significativas e de uma relação entre a arrecadação tributária e o PIB muito superior à da maioria das economias emergentes.
Nos últimos oito anos, não houve sequer um declínio anual da dívida pública líquida brasileira. Porque grande proporção -mais de 40%- está denominada em ou indexada ao dólar, o país se fez refém da grande depreciação do real acontecida nos últimos anos.
É essa a espécie de comportamento, em termos de política fiscal e administração da dívida, que Paul O'Neill, o secretário do Tesouro norte-americano, e o FMI desejam exibir como exemplo para as economias emergentes?
A acumulação da dívida se torna mais perturbadora quando o crescimento econômico se reduz. Neste ano, a economia brasileira deve crescer apenas 1,5%, comparado aos 4,5% de 2000.
O quadro em termos de dívida externa e requerimentos financeiros não é muito melhor.
A relação entre a dívida externa pública e privada e as exportações brasileiras é de mais de 400%. De 1980 para cá, apenas uma economia emergente, a do Chile, conseguiu reduzir essa relação entre dívida e exportações de um nível elevado a patamares mais moderados sem uma reestruturação significativa da dívida.
O índice de serviço anual da dívida externa brasileira fica em astronômicos 90%. São números muito pobres, porque o setor de exportação brasileiro -como o argentino- responde por apenas 10% do PIB, cerca de um quinto do nível médio das economias asiáticas emergentes e menos da metade do atingido pelo México e Chile.
Em 2000, o Brasil registrou déficit em conta corrente de 4% do PIB, pouco superior ao antecipado para este ano. Mas naquele ano o Brasil estava recebendo US$ 33 bilhões em investimento estrangeiro direto; este ano, terá sorte se obtiver metade dessa soma.

Escassez de crédito
Com necessidades de financiamento externo da ordem de US$ 45 bilhões a US$ 50 bilhões no ano que vem, há uma questão urgente quanto à origem desse dinheiro. As empresas brasileiras já enfrentam uma compressão de crédito externo e seus esforços para honrar seus pagamentos em moeda estrangeira contribuíram para a forte queda do real neste ano.
Além disso, há incerteza quanto a quem governará o Brasil depois da próxima eleição. Isso torna mais difícil preparar um plano confiável e de médio prazo para políticas econômicas cruciais. Pouco se deve esperar de promessas genéricas de honrar contratos e manter um superávit primário no orçamento.
Dados os fatores acima, pouco admira que desde o começo do ano os mercados tenham mais que duplicado o ágio dos títulos brasileiros.

América Latina
Ninguém deseja um FMI tão avesso a riscos que empreste dinheiro apenas às Suíças do planeta, ou uma organização tão preocupada com questões técnicas menores que termine por ignorar a crise financeira cada vez mais larga e profunda que atinge a América Latina.
Mas o FMI não tem futuro se não se pronunciar vigorosamente sobre as vulnerabilidades da dívida quanto elas estão em alta, e ainda mais se não puder definir a sustentabilidade da dívida como condição essencial para assistência financeira.
O FMI e os países industrializados não exerceram essa responsabilidade quando resgataram a Argentina em agosto passado e a Turquia antes disso. A menos que condicionem futuros empréstimos do FMI ao Brasil a uma reestruturação da dívida acompanhada de medidas macroeconômicas e estruturais adequadas, temo que a mesma situação se repita.


Morris Goldstein é pesquisador sênior do Instituto de Economia Internacional (IIE). Este artigo foi publicado originalmente pelo "Financial Times".


Texto Anterior: Opinião Econômica - Luiz Carlos Mendonça de Baroos: A economia brasileira mostra que está viva!
Próximo Texto: Panorâmica - Aviação: United Airlines propõe redução de salários
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.