São Paulo, quinta-feira, 30 de setembro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Segundo mandato para o companheiro Bush?

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

George w. Bush merece um segundo mandato? Nos EUA, as opiniões estão muito divididas, com alguma vantagem para o presidente. No resto do mundo, a resposta é: "Não!" -com ponto de exclamação e tudo.
Será justa essa resposta? Tem cabimento a ênfase? Não creio, sinceramente. Ninguém desconhece, é claro, os podres da sua gestão: notadamente, a desastrosa invasão do Iraque e as fragilidades da sua política econômica.
Acontece que o companheiro Bush vem prestando, sem querer, um certo serviço a países como o Brasil. Pode parecer estranho, mas é o que vem ocorrendo.
Explico. Com a desintegração da União Soviética, rompeu-se o equilíbrio de poder no mundo. Única superpotência remanescente, os EUA passaram a predominar, sem maiores contestações, em escala planetária e, com especial intensidade, nas suas áreas tradicionais de influência, como a América Latina. Bill Clinton soube valer-se dessa nova configuração, alternando com habilidade os instrumentos de "hard power" com os de "soft power". Força bruta, intervenções militares, em certas ocasiões, mas temperadas com consultas aos principais aliados, manobras diplomáticas e esforços de persuasão e sedução (aqui no Brasil, o procônsul Fernando Henrique Cardoso babava na gravata).
Com o companheiro Bush, o quadro é diferente. Não que os objetivos fundamentais da política externa dos EUA tenham sofrido transformação radical. Mas o estilo, sim. Bush é franco e aberto. A sua alma texana não cultiva a hipocrisia que, segundo La Rochefoucauld, é "a homenagem do vício à virtude". A agenda de Washington ficou mais explícita e, portanto, mais vulnerável. Acabaram-se os rapapés e os disfarces. Sumiram as figuras de retórica que disfarçam a submissão dos procônsules de diferentes cantos do planeta à estratégia da superpotência. Conseqüentemente, a influência dos EUA declinou e cresceram as resistências a Washington em grande parte do mundo, inclusive na América do Sul.
No Brasil, por exemplo, existe um numeroso "partido americano", gente que nasceu por aqui sob protesto e se identifica visceralmente com os EUA. Os seus integrantes falam português com indisfarçável "sotaque espiritual", como diria Nelson Rodrigues. Com a ascensão do companheiro Bush, esse "partido americano" perdeu o rumo de casa e já não sabe mais o que inventar para se fazer ouvir.
Outro traço curioso e paradoxal do companheiro Bush: é republicano e conservador, mas não dá ouvidos à ortodoxia econômica. O estouro da imensa bolha especulativa herdada do período Clinton ameaçava jogar a economia dos EUA em profunda recessão. O que fez Bush? Apoiado pelo Congresso, adotou uma política fiscal muito expansionista, baseada não só nos cortes de impostos tradicionalmente defendidos pelo Partido Republicano mas também em acentuada expansão dos gastos. Além dos gastos de segurança e militares, ligados à "guerra contra o terror", cresceram rapidamente despesas discricionárias com educação, saúde e outros programas governamentais. No campo do comércio exterior, o companheiro Bush mandou os partidários do livre comércio passear e seguiu, sem inibições, uma linha seletivamente protecionista, mais uma vez com apoio (e até sob pressão) da maioria dos congressistas. Os defensores tupiniquins da Alca ficaram totalmente desorientados.
E o senso de humor do companheiro Bush? Nada vale? Lembro aquela visita à sua "alma mater", a Universidade Yale. Bush discursando: "A vocês, alunos nota A, eu digo: parabéns! A vocês, alunos nota C, eu digo: vocês também podem tornar-se presidente dos EUA um dia".
E o episódio do desmaio? O espaço está acabando, mas vale uma rápida reprise. Certo dia, lá está o companheiro Bush na Casa Branca, assistindo à TV na companhia de seus dois cachorros, Spot e Barney. De repente, desmaia e vai ao chão, contundindo o rosto de maneira indisfarçável. A versão oficial: tentou engolir um "pretzel" (um biscoito salgado) sem mastigar direito. Mas ficou pouco tempo desacordado. Como saber, se ele estava sozinho? Quando recobrou os sentidos, Spot e Barney estavam na mesma posição, só que com uma "expressão preocupada", explicou Bush.
Aliás, esses cachorros do presidente, de tão mencionados em seus discursos e entrevistas, viraram verdadeiras celebridades nacionais. Na página inicial do site da Casa Branca, há uma fotografia e um link para a home page de "o primeiro-cachorro", Barney (Spot morreu nesse meio tempo). Lá encontramos a sua biografia, a foto do dia, arquivos de fotos e filmes, entre outras informações. Nesse site, "o primeiro-cachorro" recebe mais destaque do que a primeira-dama e quase tanto quanto o próprio presidente, sinal de modéstia (mais uma qualidade do companheiro Bush).
Portanto, se eu pudesse fazer um apelo aos (certamente pouquíssimos) cidadãos americanos que lêem o caderno Dinheiro da Folha, eu diria: "Não desempreguem o companheiro Bush! Não deixem, assim, truncada e inacabada essa obra tão necessária de reequilíbrio das forças internacionais!".
Mas parece que está tudo sob controle. Se estrangeiros pudessem votar, o presidente americano sofreria certamente acachapante derrota. É o que revelam pesquisas de opinião. Felizmente, outras pesquisas mostram que os americanos estão pouco ligando para o que pensa o resto do mundo.


Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


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