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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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Armadilha trava crescimento, diz economista

DA REPORTAGEM LOCAL

A economia brasileira vai crescer em 2004, mas baterá logo no teto de suas limitações macroeconômicas se não desmontar a armadilha formada por juros altos, pesada carga tributária e vulnerabilidade externa.
A análise é da economista Lídia Goldenstein, 49, associada da consultoria MB e dona da LGoldenstein, para quem o país precisa dedicar ao crescimento o mesmo empenho aplicado no passado ao combate da inflação.
Desmontar a armadilha não é tarefa para um ano e, na opinião da economista, o governo Lula já está atrasado. A seguir, trechos da entrevista de Goldenstein à Folha. (CLÁUDIA TREVISAN)

 

Folha - A sra. afirma que o consumidor brasileiro reage rapidamente ao aumento da renda. Quais são os números que comprovam isso?
Lídia Goldenstein -
Basta olhar o que aconteceu nos planos Real e Cruzado. Em ambos os casos houve uma explosão do consumo só com o controle da inflação.

Folha - E isso é bom ou é ruim?
Goldenstein -
Você pode ver pelos dois lados. Eu sempre parodio o Milan Kundera, que tem uma frase belíssima no livro "A Insustentável Leveza do Ser". Ele está falando de uma mulher e diz: "A força dela era a fraqueza dela". A força da economia brasileira é a sua fraqueza. Como você tem uma péssima distribuição de renda, uma demanda reprimida cavalar, qualquer renda disponível vira consumo. Isso faz com que a retomada seja muito rápida.
É o que nós vimos na época do Plano Real. Por mais renda que se coloque na França, as pessoas não vão comer mais iogurte, não vão comprar mais televisão. Aqui não, as pessoas vão comprar tudo.
Quem não comia iogurte passa a comer iogurte, quem tem televisão de 14 polegadas passa para uma de 19, quem não comia carne passa a comer carne. Isso dá um dinamismo e faz com que a retomada seja muito rápida se você tiver renda. Ao mesmo tempo, se isso vem sem investimento, você imediatamente bate no teto.

Folha - A alta de investimento que ocorreu no terceiro trimestre...
Goldenstein -
Basicamente foi bens de capital, compra de máquinas e equipamentos agrícolas.

Folha - O que isso significa?
Goldenstein -
Quer dizer que não há retomada de investimento generalizada de jeito nenhum.

Folha - É possível o consumo se recuperar a curto prazo, depois das quedas dos últimos meses?
Goldenstein -
Se tiver renda, sim. Como não vai ter renda, não. De onde vai vir essa renda? O desemprego continua aumentando. De um lado tem uma melhora da renda com o controle da inflação.

Folha - E por que não houve aumento do consumo?
Goldenstein -
Como a queda da renda foi muito grande, isso é pouco para garantir um "espetáculo do crescimento".

Folha - Qual é sua expectativa para os próximos meses?
Goldenstein -
O país cresce no ano que vem, não há dúvida. Mas, se crescer sem fazer o dever de casa, voltam as questões que levaram às crises dos últimos anos.

Folha - Qual é o dever de casa?
Goldenstein -
Criar as condições para a retomada do investimento. Tem de ter marco regulatório, política industrial, um BNDES apoiando a retomada e os investimentos -o desempenho do BNDES é pífio-, uma política de atração de investimentos externos, mercado de capitais. Ou seja, há coisas complexas, que você não faz de uma hora para outra. Tem de gerar condições para que tenha uma retomada de confiança e, com ela, de investimento.
Estamos muito longe de ter sequer um esboço disso tudo. É necessário formatar tudo no ano que vem, para começar em 2005. Estamos atrasados, daí meu medo de que tenhamos um crescimento que não se sustente.

Folha - A sra. acredita que o Brasil tem um piso para a taxa de juro real, abaixo do qual a economia começa a ter instabilidade e inflação?
Goldenstein -
A cultura brasileira de juro elevado é algo que vem se consolidando de maneira impressionante nos últimos 20 anos. Acho que em algum momento, assim como se teve coragem de fazer o Plano Real, tem de haver coragem para enfrentar essa questão. Sem isso, não tem como, por exemplo, desenvolver um mercado de capitais. O capital não vai financiar o investimento produtivo se pode ter uma retorno altíssimo no mercado financeiro.
Eu acho que existe uma ditadura do mercado financeiro no pensamento econômico brasileiro. E isso tem inviabilizado opções de caminhos diferentes.

Folha - Enfrentar a questão quer dizer o quê?
Goldenstein -
Não sei. Isso vai ter de ser pensado.

Folha - É baixar a taxa...
Goldenstein -
Não adianta fazer bravata. É um pacote. Se baixar amanhã, por decreto, você explode, porque o sustentáculo de todo o modelo é esse nível de taxa de juros. Para mudar isso, tem de caminhar harmonicamente em todos os lados.
É necessário, por exemplo, ter um imenso superávit comercial, para você conseguir se calçar em termos de reservas e não ter fuga de capital, que é um dos riscos da queda da taxa de juros. Para isso, tem de ter política industrial, um BNDES atuante...

Folha - Tem de ter câmbio?
Goldenstein -
Tem de ter câmbio, sem dúvida nenhuma, que não é o atual. Não estou falando para baixar os juros amanhã.

Folha - Então há precondições para que o problema da taxa de juros real possa ser enfrentado?
Goldenstein -
Assim como houve um pacote articulado para combater a inflação, vai ter de haver um pacote novo, engenhoso e articulado para combater esse nível de taxa de juros no país, porque com ele não dá para crescer.
Estamos em uma armadilha que precisa ser desarmada. Os lados dessa armadilha são juro alto, carga tributária elevadíssima e imensa vulnerabilidade externa.

Folha - Dá para desarmar tudo ao mesmo tempo?
Goldenstein -
É uma política articulada que tem de ser repensada. Quem disser que tem uma receita está mentindo. Não se pensou isso neste país nos últimos 20 anos. Pensou-se em combater a inflação. Nos últimos dez anos depois do Plano Real se pensou em combater as crises externas. O PT, que estava o tempo todo na oposição falando contra a política econômica, não pensou em uma alternativa, tanto não pensou que não tem alternativa para colocar no lugar. É um esforço novo que tem de ser feito pelo país.

Folha - Voltando à questão do consumo, apesar da rápida reação à renda, o mercado interno é muito pequeno para o tamanho da população brasileira, não?
Goldenstein -
Não é verdade. Alguns dados são impressionantes. O Brasil é o segundo mercado mundial de biscoitos, o terceiro de refrigerantes e o quarto de máquinas de lavar e geladeiras.

Folha - Isso apesar da imensa desigualdade de renda?
Goldenstein -
Entre 94 e 2000, antes de começar a cair muito a renda, o consumo de frango cresceu 86%. O consumo de refrigerante cresceu 106%, o de iogurte, 82%. Você botou hordas de novos consumidores, que jamais tinham tomado iogurte na vida, para tomar iogurte. O consumo de cerveja cresceu 74%. Se pegar os dados agora, vai ver o contrário. Um pedaço desse aumento foi devolvido pela queda na renda.



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