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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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LUÍS NASSIF

Memórias do campeão

Anatoli Karpov não tem mais o ar quase juvenil que assombrou o mundo quando surgiu para o xadrez, em meados dos anos 70. Já chegou aos 50, parece mais moço e mantém os traços orientais de quem nasceu na ex-União Soviética, na fronteira com a Ásia.
Participei de uma entrevista com ele, a convite da ESPN. Faltou tempo para tanta curiosidade. Sua vinda a São Paulo não atraiu multidões, como provavelmente ocorreria nos anos 70, quando conquistou o título mundial de xadrez, devido à desistência do norte-americano Bobby Fischer de enfrentá-lo.
A lenda Karpov nasceu logo após a lenda Fischer. O norte-americano conseguiu romper com uma hegemonia russa que vinha desde os anos 50, quando Mikhail Botvinik, o primeiro campeão mundial do pós-guerra, criou a moderna escola de xadrez russa.
No início dos anos 70 Fischer havia irrompido no mundo do xadrez como um bólido, depois de firmar fama como menino prodígio. Arrasou todos os seus adversários nas eliminatórias, culminando com a espetacular vitória sobre o campeão mundial Boris Spassky, em 1972. Fischer não compareceu à primeira partida do match, na segunda fez um sacrifício incompreensível, que o levou à derrota. Depois, arrasou. Para seus muitos fãs, as duas primeiras partidas não passaram de jogadas psicológicas finamente pensadas.
Na entrevista, Karpov explica que não. Fischer era perfeccionista ao extremo, não podia admitir erros, e começava cada match inseguro sobre suas possibilidades. Só ia ganhando segurança no decorrer dos matchs.
Foi essa a razão que levou Fischer a não aceitar a disputa com Karpov, quando este surgiu como o grande vingador russo. Com 11 anos, aliás, Karpov deixou sua cidade e rumou para Moscou, para aprender xadrez com Botvinik. Como não conhecia bem abertura, Botvinik não viu futuro nele. Mudou de opinião um ano depois.
Karpov conta, com prazer, que, adolescente, ainda venceu o professor. Na verdade, fez uma concessão e permitiu a Botvinik voltar atrás em um lance errado. Oficialmente, a partida terminou empatada. Pelos cânones sagrados do xadrez, perdeu.
E quais as possibilidades de Karpov se o match com Fischer tivesse sido realizado? A lenda sorri e diz que, naquela época, seria de 55% para Fischer e 45% para ele -pela menor experiência. Alguns anos depois, quando atingiu o auge, seria 55% para ele e 45% para Fischer. A prova foram os 150 torneios que venceu, a maior série de qualquer campeão em qualquer tempo.
O Olimpo do xadrez reserva lugar especial para os grandes nomes que não chegaram a ser campeões. Karpov cita entre eles Rubinstein, Paul Keres, o imenso Keres que entrevistei no Interzonal brasileiro do início dos anos 70, David Bronstein e Victor Korchnoi, que derrotou Mequinho em uma semifinal.
Entre todos, a maior tragédia foi com Bronstein. Nos anos 50, ele estava à frente de Botvinik, precisando de uma vitória a quatro jogos do final para ser campeão mundial. Perdeu um jogo ganho porque estourou no tempo. No início da sua carreira, Karpov indagou o que representava essa perda. Bronstein minimizou. No final da vida, desabafou com o campeão a perda da oportunidade.
Houve também os táticos geniais, os jogadores que davam lances atrevidos, sem consistência técnica, mas confiando em sua capacidade tática superior. Comportavam-se como Napoleão, diz Karpov, que primeiro entrava na batalha para depois afinar a tática.
Entre todos, cita o brilho de Mikhail Tahl, homem de sacrifícios geniais, e também seu ultra-adversário Boris Kasparov. Na ponta contrária estava Botvinik, racional ao extremo, especialista em identificar as pequenas inconsistências do jogo adversário até liquidar com ele.
O xadrez é uma forma de conhecimento acumulado. Presume-se que o enxadrista, hoje, tenha mais conhecimento do que há 20, 50 anos. Mas o xadrez também é intuição, criatividade. E o cubano José Raul Capablanca estaria à altura de qualquer campeão contemporâneo, diz ele. O mesmo Capablanca de quem Karpov copiou o estilo limpo, racional, harmonioso como um texto de Italo Calvino, como uma canção de Jobim.


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