São Paulo, terça, 30 de dezembro de 1997.




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ARTIGO
Biotecnologia na Amazônia

JOSÉ SEIXAS LOURENÇO
WANDERLEY M. DA COSTA

O debate sobre a Amazônia brasileira no seu futuro já produziu algum consenso sobre um conjunto de temas de grande importância. Sabe-se hoje, por exemplo, que o pouco que se conhece sobre a sua biodiversidade é suficiente para qualificá-la como a mais rica do planeta; que a sua proteção é essencial, deve envolver uma estratégia nacional e requer apoio internacional; que é incalculável sua potencialidade econômica, a partir de pesquisas e aplicações nas áreas de química de produtos naturais, bioquímica, fitoquímica, biologia molecular, microbiologia, farmacologia, agronomia e biotecnologia em geral; que sua utilização, quando feita de modo tecnologicamente adequado, não só é possível como também desejável, porque, além de outros benefícios, contribui para a sua conservação.
Há outras questões igualmente relevantes, mas, que, lamentavelmente, têm sido até aqui alvo mais de alarde que de análise cuidadosa. Tal é o caso da chamada biopirataria.
Alguém já se deu conta das possibilidades infinitas de coleta e transporte de microorganismos, insetos, sementes, plantas, extratos de plantas e de toxinas animais, substâncias semi-elaboradas, enzimas, proteínas -enfim, os milhões de seres vivos e seus produtos que podem ser extraídos de uma floresta tropical como a Amazônica?
O desafio a ser enfrentado nesse campo, e que certamente envolverá um esforço conjunto do governo e da sociedade associado a uma grande dose de criatividade, é o de como monitorar, fiscalizar e reprimir esses assaltos ao nosso imenso patrimônio natural, nas condições da Amazônia e com base apenas nos instrumentos convencionais de que dispomos hoje.
Logo de início, é preciso reconhecer que, mesmo nesse terreno, ainda estamos bastante frágeis: o projeto de lei que regula o acesso à biodiversidade ainda não foi concluído no Congresso e a sua tramitação precisa ser acelerada; o policiamento é insuficiente e a fiscalização precisa ser aperfeiçoada, sobretudo nas fronteiras, portos e aeroportos. Mesmo com a implantação de projetos de grande envergadura, como o Sivam, o controle fino da circulação continuará praticamente impossível numa região com as características da Amazônia.
Além disso, permeia esse tema um complicador adicional que merece alguma reflexão, especialmente pelos que apreciam julgamentos apressados: quem pode assegurar que a biopirataria é obra exclusiva de estrangeiros?
Já dispomos hoje de um razoável número de experiências bem-sucedidas baseadas no uso sustentável dos recursos florestais não-madeireiros (sistemas agroflorestais, piscicultura etc.), com resultados positivos para a proteção ambiental e geração de renda para as populações tradicionais da região.
Sabe-se hoje que essa estratégia também pode ser capaz de gerar uma gama enorme de oportunidades econômicas para pequenos e grandes empreendimentos baseados na utilização da biodiversidade, envolvendo pesquisas de várias áreas da ciência, desenvolvimento de tecnologias, industrialização e comercialização de produtos biotecnológicos em geral.
O governo federal lançou recentemente o Probem/Amazônia -Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia-, que pretende organizar e propor iniciativas nessa direção.
Ele está baseado sobretudo no forte envolvimento de grupos de pesquisas do país que se encontram, atualmente, em estágios avançados no processo de identificação e desenvolvimento de produtos oriundos da biodiversidade tropical.
O esforço tem se concentrado em associar laboratórios e grupos de pesquisa numa rede de âmbito nacional e integrá-la a um programa voltado para a Amazônia. Planejado para constituir-se no centro dessa rede, está sendo projetado um complexo laboratorial de padrão mundial, localizado em Manaus (o Centro de Biotecnologia da Amazônia) e voltado para atividades de pesquisa, banco e germoplasmas, desenvolvimento e transferência de tecnologias, certificação de produtos, controle da propriedade industrial, incubação de empresas e comercialização -todas direcionadas para o desenvolvimento de um futuro pólo de bioindústrias na região.
Os avanços no processo de detalhamento desse programa têm sido consideráveis, graças, principalmente, ao trabalho que tem sido desenvolvido por um conjunto expressivo de pesquisadores ao lado dos diversos setores do governo e instituições e grupos de apoio da região. Neste momento, entretanto, encontramo-nos numa fase de definições envolvendo temas cruciais para o programa.
Em primeiro lugar, é essencial que o desenho institucional e organizacional a ser adotado para a entidade controladora corresponda às aspirações hoje predominantes no país -isto é, instituições com forte participação dos diversos setores sociais (nesse caso, desde as populações tradicionais da região até os setores empresariais), híbridas e flexíveis (públicas, mas não necessariamente estatais) e, sobretudo, economicamente auto-sustentáveis.
Em segundo, que o planejamento desse empreendimento de fato resulte em benefícios concretos para a Amazônia -isto é, a proteção e o enriquecimento da sua biodiversidade, a melhoria das condições de vida das suas populações e a reconversão do padrão de exploração econômica hoje predominante na região.
Finalmente, uma questão que constitui a chave do sucesso ou do fracasso desse empreendimento. É imprescindível que enfrentemos de vez o problema relativo ao controle da propriedade industrial e ao processo de patenteamento para produtos biotecnológicos.
Além do aperfeiçoamento legal, é preciso que nos capacitemos para as complicadas batalhas especificamente técnicas, administrativas e judiciais, no país e no exterior, para fazermos valer os nossos direitos (os gerais e os privados); especialmente porque, além de detentores do patrimônio biológico, também pretendemos desenvolver competência científica, tecnológica e industrial nesse setor.


José Seixas Lourenço, 53, é secretário de Coodernação da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal.
Wanderley Messias da Costa, 47, é diretor de Programas e Projetos da Secretaria de Coordenação da Amazônia e coordenador do Probem/Amazônia.



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