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OPINIÃO ECONÔMICA
Ortodoxia não é panacéia
PAULO RABELLO DE CASTRO
Pouca gente é capaz de recordar-se, dez anos depois, de
que o Real nasceu como plano
não-ortodoxo. Encarado com
desconfiança pela "ortodoxia" do
FMI -que recusou-se a financiar
um colchão de liquidez na transição para a nova moeda-, o plano de estabilização tinha, entretanto, os requisitos essenciais para tornar-se um sucesso. O Real,
de fato, nascia como concepção
correta -ortodoxa, portanto-
na medida em que rejeitava o erro cometido pelos planos heterodoxos anteriores, não adotando o
congelamento de preços, salários
e câmbio ou, muito menos, o congelamento da poupança, como
no famigerado experimento do
Plano Collor.
O Plano Real deixou o sistema
de preços funcionar, coibindo a
prática da correção monetária ou
salarial em períodos inferiores a
um ano e havendo estabelecido,
previamente, uma certa disciplina fiscal por meio do FEF (Fundo
de Estabilização Fiscal). O resto
ficou por conta do engenhoso
processo de engate de preços velhos a preços novos por meio da
chamada URV (Unidade Real de
Valor).
Um dos maestros do Real, Gustavo Franco, me comentava, poucos dias após o lançamento do
Real, ainda em julho de 1994, com
a habitual ironia: "Revisamos cada ponto do plano exaustivamente. Fizemos o que a intuição e a
boa técnica recomendavam. Se
agora não der certo, deve ser porque a realidade está errada...".
Não estava. A realidade estava
certa, e o plano foi o sucesso que
permitiu ao pai do Real tornar-se
presidente da República, derrotando o então candidato Lula,
nas urnas, em outubro de 1994.
O que se seguiu, depois, é mais
curioso ainda. Embaladas pelo
sucesso do Real, as mães, madrinhas e comadres do plano passaram a abusar do "milagre". Entre
as últimas, e das mais eufóricas
pela ilusória robustez daqueles
primeiros resultados, estavam o
mercado financeiro doméstico,
logo a seguir as Bolsas de Valores,
os capitais especulativos que não
paravam de chegar ao país e
-quem diria- os "experts" do
FMI e de largos segmentos da
sempre influente academia norte-americana. Logo estava Wall
Street inteira envolvida num clima de festa, endossado largamente por opiniões reconfortantes das agências de "rating" internacionais e por fortes recomendações de compras de papéis brasileiros, cujo risco-país, medido pelo índice do JP Morgan, chegou a
menos de 300 pontos de "spread",
logo antes do primeiro grande
susto: a crise asiática de outubro
de 1997.
De julho de 94 a meados de 97,
em três anos, portanto, um plano
não-ortodoxo e considerado suspeito pelos técnicos do establishment financeiro havia se tornado
uma espécie de glória da ortodoxia e do convencionalismo, na
douta opinião dos financistas internacionais e do próprio FMI.
Quem não se lembra dos elogios
de "monsieur" Camdessus à equipe do Real? Contudo, à medida
que se tornava "ortodoxo", o plano, de fato, afundava em suas
contradições, ao afastar-se da
boa intuição e do bom senso: da
intuição, que ditava a necessidade urgente de revalorizar a produção e o emprego, via relaxamento da "banda" cambial quase
fixa; e do bom senso, que exigia
contenção do gasto público, com
o qual se vinha acomodando a
base de apoio do governo ao projeto de reeleição.
Mas falar dessas coisas, àquela
altura, não era ortodoxo e até
atrapalhava as excelentes perspectivas com os quais o mercado
embalava seu sonho de enriquecimento fácil. A trombada que se
seguiu, com a crise de 98 e a maxidesvalorização de 99, pôs água
abaixo notáveis planos daquela
nova ortodoxia, fazendo de Gustavo Franco sua vítima principal,
por ser o ortodoxo mais ágil e
mais sincero e, por isso, mais exposto ao "fogo amigo" dentro do
governo e do próprio Banco Central.
Esta longa narrativa tem o único e exclusivo intuito de deitar
por terra a nova ortodoxia que
agora reaparece vestida de "metas de inflação", cuja desobediência levaria o país direto para o
buraco negro da estagnação inflacionária. Nada mais torto e heterodoxo do que insistir na rígida
fixação de metas de inflação
quando adotadas sobre um padrão monetário incompatível
com os pressupostos exigidos para sua boa execução.
Tal como no início do Plano
Real, que começou bem enquanto
prevalecia a reta intuição e o bom
senso, mas depois perdeu-se,
quando seus pilotos resolveram
perguntar aos outros o que parecia certo ou errado, estamos de
novo engavetados pela falsa ortodoxia monetária ditada por uma
cópia equivocada da boa técnica
de gestão da moeda e do crédito.
Metas de inflação são apenas um
coadjuvante na gestão de uma
moeda. São um dispositivo para
facilitar a previsibilidade, pelo
mercado, das políticas de gerenciamento da liquidez adotadas
pelo Banco Central.
Para funcionar bem, metas de
inflação exigem dispositivos inexistentes no ambiente brasileiro
como: 1) a desindexação ampla
(estamos ainda aferrados ao IGP-M); 2) uma boa definição de núcleo inflacionário (a inflação dos
preços livres, corrigidos de acidentalidades e choques) e, principalmente, 3) um Conselho ou Comissão de Política Monetária,
formado por membros não-pertencentes à diretoria executiva do
BC.
São esses apenas alguns aspectos que refutam a ortodoxia das
metas inflacionárias brasileiras,
conspirando contra a qualidade
efetiva das decisões do atual Copom, que esgrime juros como um
espadachim, enquanto o suprimento monetário, para horror de
Milton Friedman (se visse isso!),
afunda no território negativo,
contraindo-se a ponto de jogar a
produção e o emprego aos níveis
mais baixos dos últimos anos.
Essa ortodoxia não é panacéia.
Longe disso. A palavra ortodoxia
virou um triste apelido que só serve para confundir governantes
mal informados e apaziguar
membros do Congresso Nacional,
que deveriam acompanhar mais
de perto o risco de ruptura social
a que nos pode levar esta comédia
de erros.
Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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