São Paulo, quarta-feira, 31 de março de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Ortodoxia não é panacéia

PAULO RABELLO DE CASTRO

Pouca gente é capaz de recordar-se, dez anos depois, de que o Real nasceu como plano não-ortodoxo. Encarado com desconfiança pela "ortodoxia" do FMI -que recusou-se a financiar um colchão de liquidez na transição para a nova moeda-, o plano de estabilização tinha, entretanto, os requisitos essenciais para tornar-se um sucesso. O Real, de fato, nascia como concepção correta -ortodoxa, portanto- na medida em que rejeitava o erro cometido pelos planos heterodoxos anteriores, não adotando o congelamento de preços, salários e câmbio ou, muito menos, o congelamento da poupança, como no famigerado experimento do Plano Collor.
O Plano Real deixou o sistema de preços funcionar, coibindo a prática da correção monetária ou salarial em períodos inferiores a um ano e havendo estabelecido, previamente, uma certa disciplina fiscal por meio do FEF (Fundo de Estabilização Fiscal). O resto ficou por conta do engenhoso processo de engate de preços velhos a preços novos por meio da chamada URV (Unidade Real de Valor).
Um dos maestros do Real, Gustavo Franco, me comentava, poucos dias após o lançamento do Real, ainda em julho de 1994, com a habitual ironia: "Revisamos cada ponto do plano exaustivamente. Fizemos o que a intuição e a boa técnica recomendavam. Se agora não der certo, deve ser porque a realidade está errada...". Não estava. A realidade estava certa, e o plano foi o sucesso que permitiu ao pai do Real tornar-se presidente da República, derrotando o então candidato Lula, nas urnas, em outubro de 1994.
O que se seguiu, depois, é mais curioso ainda. Embaladas pelo sucesso do Real, as mães, madrinhas e comadres do plano passaram a abusar do "milagre". Entre as últimas, e das mais eufóricas pela ilusória robustez daqueles primeiros resultados, estavam o mercado financeiro doméstico, logo a seguir as Bolsas de Valores, os capitais especulativos que não paravam de chegar ao país e -quem diria- os "experts" do FMI e de largos segmentos da sempre influente academia norte-americana. Logo estava Wall Street inteira envolvida num clima de festa, endossado largamente por opiniões reconfortantes das agências de "rating" internacionais e por fortes recomendações de compras de papéis brasileiros, cujo risco-país, medido pelo índice do JP Morgan, chegou a menos de 300 pontos de "spread", logo antes do primeiro grande susto: a crise asiática de outubro de 1997.
De julho de 94 a meados de 97, em três anos, portanto, um plano não-ortodoxo e considerado suspeito pelos técnicos do establishment financeiro havia se tornado uma espécie de glória da ortodoxia e do convencionalismo, na douta opinião dos financistas internacionais e do próprio FMI. Quem não se lembra dos elogios de "monsieur" Camdessus à equipe do Real? Contudo, à medida que se tornava "ortodoxo", o plano, de fato, afundava em suas contradições, ao afastar-se da boa intuição e do bom senso: da intuição, que ditava a necessidade urgente de revalorizar a produção e o emprego, via relaxamento da "banda" cambial quase fixa; e do bom senso, que exigia contenção do gasto público, com o qual se vinha acomodando a base de apoio do governo ao projeto de reeleição.
Mas falar dessas coisas, àquela altura, não era ortodoxo e até atrapalhava as excelentes perspectivas com os quais o mercado embalava seu sonho de enriquecimento fácil. A trombada que se seguiu, com a crise de 98 e a maxidesvalorização de 99, pôs água abaixo notáveis planos daquela nova ortodoxia, fazendo de Gustavo Franco sua vítima principal, por ser o ortodoxo mais ágil e mais sincero e, por isso, mais exposto ao "fogo amigo" dentro do governo e do próprio Banco Central.
Esta longa narrativa tem o único e exclusivo intuito de deitar por terra a nova ortodoxia que agora reaparece vestida de "metas de inflação", cuja desobediência levaria o país direto para o buraco negro da estagnação inflacionária. Nada mais torto e heterodoxo do que insistir na rígida fixação de metas de inflação quando adotadas sobre um padrão monetário incompatível com os pressupostos exigidos para sua boa execução.
Tal como no início do Plano Real, que começou bem enquanto prevalecia a reta intuição e o bom senso, mas depois perdeu-se, quando seus pilotos resolveram perguntar aos outros o que parecia certo ou errado, estamos de novo engavetados pela falsa ortodoxia monetária ditada por uma cópia equivocada da boa técnica de gestão da moeda e do crédito. Metas de inflação são apenas um coadjuvante na gestão de uma moeda. São um dispositivo para facilitar a previsibilidade, pelo mercado, das políticas de gerenciamento da liquidez adotadas pelo Banco Central.
Para funcionar bem, metas de inflação exigem dispositivos inexistentes no ambiente brasileiro como: 1) a desindexação ampla (estamos ainda aferrados ao IGP-M); 2) uma boa definição de núcleo inflacionário (a inflação dos preços livres, corrigidos de acidentalidades e choques) e, principalmente, 3) um Conselho ou Comissão de Política Monetária, formado por membros não-pertencentes à diretoria executiva do BC.
São esses apenas alguns aspectos que refutam a ortodoxia das metas inflacionárias brasileiras, conspirando contra a qualidade efetiva das decisões do atual Copom, que esgrime juros como um espadachim, enquanto o suprimento monetário, para horror de Milton Friedman (se visse isso!), afunda no território negativo, contraindo-se a ponto de jogar a produção e o emprego aos níveis mais baixos dos últimos anos.
Essa ortodoxia não é panacéia. Longe disso. A palavra ortodoxia virou um triste apelido que só serve para confundir governantes mal informados e apaziguar membros do Congresso Nacional, que deveriam acompanhar mais de perto o risco de ruptura social a que nos pode levar esta comédia de erros.


Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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