São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

China: os três grandes desafios

LUCIANO COUTINHO

O extraordinário desempenho da China tem sido objeto de ampla admiração e, recentemente, de grande preocupação. Desde os anos 80, a economia socialista de mercado chinesa mais que triplicou de tamanho, triplicou a sua renda per capita, multiplicou por seis vezes a sua participação no comércio global e passou a desempenhar o papel de locomotiva do mundo asiático. São notáveis os avanços em matéria de capacitação tecnológica e de rápido aprendizado competitivo de suas empresas -só comparáveis ao desempenho coreano nos anos 70 e 80. O sistema universitário chinês forma cerca de 3 milhões de graduandos por ano com qualidade crescente, visando suprir os recursos humanos qualificados necessários para o funcionamento eficiente do Estado, do partido e do sistema empresarial.
Mas a sustentação dessa espetacular trajetória se defronta, como veremos, com três grandiosos desafios que resultaram da própria rapidez e do estilo específico da via de desenvolvimento. Desde logo há o desafio conjuntural de desacelerar o ritmo excessivamente aquecido do crescimento -o que vem gerando estrangulamentos de oferta de infra-estruturas e de insumos industriais. Apesar de delicada, não representa uma tarefa intratável. As autoridades econômicas chinesas já enfrentaram essa questão em meados dos anos 90 e sabem como usar adequadamente os instrumentos de controle dos investimentos e do crédito para moderar a expansão sem provocar uma recessão.
Os problemas estruturais, porém, são cabeludos! O primeiro diz respeito à grande massa de créditos insolventes existente no sistema bancário, estimada em cerca de US$ 400 bilhões (25% do total dos ativos e cerca de 28% do PIB). Parte dessa massa (cerca de US$ 180 bilhões) é tida como recuperável e, para isso, o governo chinês a repartiu em quatro fatias, já alocadas em agências encarregadas de reestruturação empresarial para posterior liquidação/ venda. O volume restante terá de ser absorvido gradualmente -tarefa que só será possível num contexto de manutenção do rápido crescimento econômico. Além disso, é imprescindível evitar o acúmulo de novos ativos duvidosos, o que requer um salto qualitativo nos padrões de "rating" das operações bancárias -algo que não se consegue da noite para o dia, mas vem sendo objeto de dedicado esforço por parte das autoridades monetárias chinesas.
O segundo desafio, portentoso, refere-se ao equacionamento das limitações ambientais, hídricas e energéticas diante da rápida urbanização, com veloz mimetização dos padrões ocidentais de consumo. A continuidade do crescimento acelerado -sem um planejamento muito mais rigoroso dos requisitos, de um lado, da expansão da oferta de infra-estruturas e dos bens públicos e, de outro, da poupança desses fatores escassos- pode redundar em estrangulamentos desastrosos.
No caso de China, considerado o tamanho de sua população e a relativa escassez dos recursos naturais, é imperioso evitar desperdícios. É recente a consciência dessa necessidade. Há apenas dois anos, adotou-se o programa dos três "R" -redução (do consumo de água e de energia), reúso e reciclagem. Será imprescindível aumentar a abrangência e a eficácia desse programa, assim como parece indispensável acelerar o aumento das fontes alternativas de energia, inclusive de base nuclear.
O terceiro superdesafio refere-se à manutenção da hegemonia política do PC num contexto de veloz diferenciação da estrutura social. Salta à vista na China de hoje a emergência de uma classe média abastada e de uma pequena burguesia pujante, proprietária de negócios informais altamente rentáveis, em contraste com a estreita escala salarial dos funcionários públicos. Essa discrepância torna tanto o governo quanto o PC vulneráveis à corrupção. Consciente desse risco, o partido explicitou uma severa campanha anticorrupção e confia em um esforço de qualificação de seus quadros dirigentes para fazer frente aos imensos desafios acima mencionados.
Nada disso, porém, será eficaz sem a sustentação do rápido crescimento da economia, o que provê a criação de empregos e o aumento persistente da renda -única forma de assegurar legitimação ao monopólio político do PC. Sem crescimento também será impossível a absorção dos esqueletos bancários.
Não se espere, portanto, que a China venha ceder às fortes pressões externas para a apreciação do yuan -pressões que certamente serão intensificadas após as eleições norte-americanas, mormente no atual cenário de fragilização do dólar.
Apesar de serem gigantescos os desafios aqui assinalados, a história dos últimos 30 anos sugere que não se deve subestimar a capacidade do Estado e do PC chinês de enfrentá-los pedalando para a frente.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-1988).


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