São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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LUÍS NASSIF

Filosofias de botequim

Havia um velho freqüentador do bar do Alemão, ali no viaduto Antarctica, que foi fazer análise. Uma noite, em que o choro corria solto, chegou à roda e fez uma imersão de autoconhecimento. "Quem sou eu", "o que faço da vida", "o que pretendo de mim próprio" e aqueles papos maneiros dos psicologizados ébrios. Foi tocado a vassourada do bar.
Pois não é que, em plena sexta-feira, mergulhei nessa crise de identidade? Sou jornalista econômico relativamente conhecido? Sou. Nos anos 80, era conhecido por ser especialista em matemática financeira? Era. Freqüentei o bar do Alemão? Era freqüentador assíduo, tocando bandolim quase toda noite na mesa 8. Lancei livro recentemente? Lancei. Voltei a freqüentar o bar do Alemão? Voltei.
Depois de fazer esse "check-list" completo, liguei de volta para minha filha Luizinha e recitei a frase temida: "A pessoa difamada sou eu, mesmo".
Pouco antes ela tinha telefonado soltando fogo pelas ventas, porque o "Guia", do "Estado de S.Paulo", saíra com uma reportagem sobre o Alemão com o sugestivo título: "Matemática financeira na hora da conta". Nela, falava-se de seis amigos que freqüentavam toda quinta-feira o bar do Alemão. Na hora de dividir a conta, um deles, jornalista econômico "de renome", "especialista em matemática financeira" etc., sacava a calculadora e dizia o quanto cada membro do grupo deveria pagar. Um dia, um dos amigos levou uma calculadora e, depois de o jornalista ter feito o cálculo, refez a conta e constatou que o malandro dividia a conta por cinco e deixava de pagar a sua parte. Nos últimos meses, o jornalista econômico retornou ao bar, depois de lançar um livro.
Admito que, em algumas noitadas do Alemão, bebi um pouco além da conta, e pode ter ocorrido algum episódio que o álcool varreu da minha memória. Mas uma cena continuada como aquela, positivamente, não constava no HD da minha memória.
Toca ligar para o Sandro Vaia, diretor de Redação do "Estado de S.Paulo" e testemunha ocular daqueles tempos, ele, o Elói Gertel, o Klebinho, todo o povo do "Jornal da Tarde" da época. O Sandro leu, levou um susto, ficou indignado e disse que iria tomar providências. Na outra linha do celular, Mariana, outra filha, querendo chupar com canudinho o sangue do redator difamador. Tenho cada filha braba!
Ligo para as meninas pedindo para baixar as armas, que a honra do seu pai seria reparada. Aí o Sandro me liga, todo aliviado, acalmando. "Pode ficar tranqüilo, que o jornalista não é você. É fulano de tal."
Senti-me o próprio Henry Ford naquele filme "O Homem Errado", de Alfred Hitchcock. "Mas, Sandro, nunca vi fulano no bar, ele não conhece matemática financeira, não lançou livro recentemente, e jornalista econômico conhecido como freqüentador do bar do Alemão sou eu." E Sandro, com sua pachorra velha de guerra: "Pode ficar sossegado, é fulano, mesmo". "Mas, Sandro, nem aquela reparaçãozinha que você me prometeu?". E ele: "Como reparar, se o jornalista econômico não é você?". Pensei, pensei e admiti: ele está certo. A reportagem dizia que tinha orelha de gato, rabo de gato, olho de gato, miava. Mas não era o gato, era o galo do vizinho.
Até me lembrei de um terceiro jornalista econômico, que ia ao Alemão quando saíamos do fechamento de "Veja". Ele tomava uísque, a gente tomava chope. Ele ganhava mais, a gente ganhava menos. Um pouco antes de pedir a conta, abria-se uma discussão sobre um tema qualquer -tipo quem foi maior, Vinicius ou Drummond. Ele, que era calmo, de repente se exaltava e saía indignado do bar. Sem pagar a conta. Quando descobrimos a jogada, ficamos todos de tocaia. No grande final da indignação, ele se levantou e o bar inteiro gritou em coro: "Paga a conta antes, fulano de tal". Foi legal, e terminou em boas risadas.
Mas fiquei com crise de identidade. Seria eu, eu? Seria eu, fulano? Seria eu o Sandro Vaia? Quem serei eu? Se eu for o fulano, terei a reparação? Mas quem precisa da reparação, fulano ou eu?
Está cada vez mais complicado ser freqüentador de boteco neste país.


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