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LUÍS NASSIF
Filosofias de botequim
Havia um velho freqüentador do bar do Alemão, ali
no viaduto Antarctica, que foi fazer análise. Uma noite, em que o
choro corria solto, chegou à roda
e fez uma imersão de autoconhecimento. "Quem sou eu", "o que
faço da vida", "o que pretendo de
mim próprio" e aqueles papos
maneiros dos psicologizados
ébrios. Foi tocado a vassourada
do bar.
Pois não é que, em plena sexta-feira, mergulhei nessa crise de
identidade? Sou jornalista econômico relativamente conhecido?
Sou. Nos anos 80, era conhecido
por ser especialista em matemática financeira? Era. Freqüentei o
bar do Alemão? Era freqüentador
assíduo, tocando bandolim quase
toda noite na mesa 8. Lancei livro
recentemente? Lancei. Voltei a
freqüentar o bar do Alemão? Voltei.
Depois de fazer esse "check-list"
completo, liguei de volta para minha filha Luizinha e recitei a frase
temida: "A pessoa difamada sou
eu, mesmo".
Pouco antes ela tinha telefonado soltando fogo pelas ventas,
porque o "Guia", do "Estado de
S.Paulo", saíra com uma reportagem sobre o Alemão com o sugestivo título: "Matemática financeira na hora da conta". Nela, falava-se de seis amigos que freqüentavam toda quinta-feira o bar do
Alemão. Na hora de dividir a conta, um deles, jornalista econômico
"de renome", "especialista em
matemática financeira" etc., sacava a calculadora e dizia o
quanto cada membro do grupo
deveria pagar. Um dia, um dos
amigos levou uma calculadora e,
depois de o jornalista ter feito o
cálculo, refez a conta e constatou
que o malandro dividia a conta
por cinco e deixava de pagar a
sua parte. Nos últimos meses, o
jornalista econômico retornou ao
bar, depois de lançar um livro.
Admito que, em algumas noitadas do Alemão, bebi um pouco
além da conta, e pode ter ocorrido
algum episódio que o álcool varreu da minha memória. Mas uma
cena continuada como aquela,
positivamente, não constava no
HD da minha memória.
Toca ligar para o Sandro Vaia,
diretor de Redação do "Estado de
S.Paulo" e testemunha ocular daqueles tempos, ele, o Elói Gertel, o
Klebinho, todo o povo do "Jornal
da Tarde" da época. O Sandro
leu, levou um susto, ficou indignado e disse que iria tomar providências. Na outra linha do celular, Mariana, outra filha, querendo chupar com canudinho o sangue do redator difamador. Tenho
cada filha braba!
Ligo para as meninas pedindo
para baixar as armas, que a honra do seu pai seria reparada. Aí o
Sandro me liga, todo aliviado,
acalmando. "Pode ficar tranqüilo, que o jornalista não é você. É
fulano de tal."
Senti-me o próprio Henry Ford
naquele filme "O Homem Errado", de Alfred Hitchcock. "Mas,
Sandro, nunca vi fulano no bar,
ele não conhece matemática financeira, não lançou livro recentemente, e jornalista econômico
conhecido como freqüentador do
bar do Alemão sou eu." E Sandro,
com sua pachorra velha de guerra: "Pode ficar sossegado, é fulano, mesmo". "Mas, Sandro, nem
aquela reparaçãozinha que você
me prometeu?". E ele: "Como reparar, se o jornalista econômico
não é você?". Pensei, pensei e admiti: ele está certo. A reportagem
dizia que tinha orelha de gato, rabo de gato, olho de gato, miava.
Mas não era o gato, era o galo do
vizinho.
Até me lembrei de um terceiro
jornalista econômico, que ia ao
Alemão quando saíamos do fechamento de "Veja". Ele tomava
uísque, a gente tomava chope. Ele
ganhava mais, a gente ganhava
menos. Um pouco antes de pedir
a conta, abria-se uma discussão
sobre um tema qualquer -tipo
quem foi maior, Vinicius ou
Drummond. Ele, que era calmo,
de repente se exaltava e saía indignado do bar. Sem pagar a conta. Quando descobrimos a jogada, ficamos todos de tocaia. No
grande final da indignação, ele se
levantou e o bar inteiro gritou em
coro: "Paga a conta antes, fulano
de tal". Foi legal, e terminou em
boas risadas.
Mas fiquei com crise de identidade. Seria eu, eu? Seria eu, fulano? Seria eu o Sandro Vaia?
Quem serei eu? Se eu for o fulano,
terei a reparação? Mas quem precisa da reparação, fulano ou eu?
Está cada vez mais complicado
ser freqüentador de boteco neste
país.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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