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Classe média europeia fica mais pobre
"Novos pobres" do continente recorrem cada vez mais à ajuda estatal e a entidades assistenciais, como a Cruz Vermelha
Rede de amparo dá sinais de estresse, pois gastos sociais devem ser reduzidos pelo alto grau de endividamento dos governos europeus
LUCIANA COELHO
DE GENEBRA
David Lynch -não o cineasta, o funcionário da Cruz Vermelha- soa como um otimista
resignado. Mexe o café, suspira,
conta que seu salário foi cortado, o da mulher também, bem
como a pensão do sogro. Diz
que as amigas disputam em sites de relacionamento quem
produz mais salsicha caseira e
vê na crise um lado bom -as famílias se uniram ao se verem
sem dinheiro para sair. Valores
tradicionais foram resgatados.
E a fase pior, acha, passará logo.
Lynch, nascido na Inglaterra,
vive em um país cuja economia
derreteu na crise financeira e
que se tornou um microcosmo
para observar os efeitos do colapso financeiro na Europa: a
Islândia. Uma ilha de pouco
mais de 300 mil habitantes dona de uma das economias financeiras mais sofisticadas do
planeta até o dia em que a crise
estourou a bolha local.
O funcionário da Cruz Vermelha, casado com uma colega
islandesa e pai de três estudantes, faz parte de uma massa que
cresce visivelmente na Europa.
A da classe média empobrecida
que cada vez mais recorre à ajuda estatal e a entidades como a
que emprega Lynch.
Mas essa rede de amparo
também dá sinais de estresse.
A OCDE (Organização para a
Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) disse recentemente que, com o índice
de endividamento dos governos em alta, os gastos sociais
serão reduzidos mesmo na retomada. E a Cruz Vermelha, em
relatório sobre o impacto humanitário da crise, reitera o
apelo por ação estatal diante de
um caixa minguante.
"Tendo gastado trilhões
[com o sistema financeiro], não
custaria tanto aos governos pegar uma fração e colocar na rede de seguridade social para
frear o problema", disse à Folha em Genebra Mathew Varghese, diretor de gestão de conhecimento da Federação Internacional da Cruz Vermelha
e do Crescente Vermelho.
Distintos organismos dizem
ainda ser cedo para quantificar
os novos pobres da crise. Por
ora tudo paira no campo da
percepção. Mas é uma percepção unânime, que permeia o relatório da Cruz Vermelha, a
OCDE, a Comissão Europeia e
a pesquisa Eurobarômetro.
Conta de 80 milhões
Na conta da União Europeia,
divulgada em cúpula nesta semana sobre o tema, somam 80
milhões os pobres do bloco -o
que equivale a cerca de 16% da
população. Definir pobreza é
delicado. Para a UE, pobre é
quem vive com renda familiar
inferior a 60% da renda média
do país. A equação inclui o custo de vida.
As percepções dos europeus
parecem ratificar esse número.
Praticamente 3 em cada 4 cidadãos da UE (73%) acham que a
pobreza em seu país é disseminada, segundo a sondagem do
Eurobarômetro compilada de
28 de agosto a 17 de setembro e
divulgada nesta semana.
Até na idílica Dinamarca,
PIB per capita anual de US$
37,1 mil, 31% da população afirma ver "pobreza disseminada"
no país. Para os húngaros, PIB
per capita de US$ 19,8 mil, a impressão é quase unânime: 96%.
Família
A Cruz Vermelha ecoa no relatório casos como o da cozinheira húngara Katalin Villás,
45, mãe de três adolescentes.
Katalin tem onde morar e o
que comer, mas depende de assistência de organizações humanitárias para pagar as contas, alterna bicos e desemprego
e agora teme ter de responder
na Justiça por uma dívida de
675 contraída para reconstruir sua casa. Não economizou
para o inverno, quando as contas sobem muito por causa do
aquecimento. E as instituições tampouco terão como ajudar.
Como mãe solteira, Katalin é
parte do grupo "mais vulnerável" identificado pela entidade,
ao qual se somam migrantes,
minorias e os jovens -alvo
maior do desemprego recente.
Esses grupos se tornam mais
dependentes do Estado e das
entidades assistenciais por carecerem de apoio familiar. E,
com as duas primeiras redes
puídas, é para esta última que
se voltou a carga com a crise.
Os relatos aí são díspares.
Lynch conta que na Islândia as
famílias se ajudam mais em
tempos difíceis. Mas Varghese
lembra que, na maior parte da
Europa ocidental, prevalece a
cultura do "cada um com os
seus problemas".
Esse senso agudiza a crescente "pobreza" da classe média. Gente que perdeu o emprego e agora não consegue pagar
as contas -não apenas do cartão de crédito, mas da eletricidade- se vê sem a quem recorrer. É por isso que há tantos pedidos de ajuda inéditos.
Nesse cenário, já começam a
aumentar as tensões sociais.
"As pessoas veem o que os governos emprestaram aos bancos", afirma Varghese.
Na Islândia, Lynch contou 15
fins de semana seguidos de manifestações diante do Parlamento. Mas, apesar da mudança de governo no país do norte,
nada chegou ainda a estourar.
O que pululam são os alertas.
"Tudo ainda é muito latente,
abaixo da superfície. A vida
continua, as coisas parecem
iguais, as lojas abrem, ainda
que com muito menos a oferecer. É como se tivéssemos voltado aos anos 70."
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