São Paulo, terça-feira, 31 de dezembro de 2002

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LUÍS NASSIF

O último dia de FHC

É curioso o processo de avaliação do governo Fernando Henrique Cardoso. Nos primeiros quatro anos, foi alvo de defesas apologéticas, que ignoraram até os enormes erros cometidos no plano econômico. O sucesso da estabilização inibia qualquer crítica. Nos últimos quatro anos, foi alvo de ataques cerrados, que ignoravam até mesmo os avanços institucionais. O auge desses ataques ocorreu neste ano, coincidindo com o período eleitoral.
À medida que as eleições passaram e que a transição se completa, o bom senso vai se estabelecendo e -com todas as limitações decorrentes do pouco tempo para avaliações históricas- chega-se a um diagnóstico razoavelmente isento sobre o governo. E desnudam-se o elogio extremamente fácil e a crítica agudamente falsa que dominaram um período e outro.
Todo governo está sujeito a uma gama de escândalos variados. Mas o governo FHC não foi um governo de escândalos. O que se veiculou nesse período -e a cada dia que passa torna-se mais claro- foram, em geral, manipulações de episódios, quando não falsificações amplas e julgamentos distorcidos. Foi um período de ampla falta de critério da mídia, da qual se prevaleceram lobistas em geral, valendo-se da falta de filtros técnicos nas notícias.
No plano político, já existe amplo reconhecimento de que foi um governo fundamental para a transição política do país. O próprio amadurecimento do PT e sua política de alianças, sua preocupação com a governabilidade e a metodologia de acomodação de alianças fazem parte da herança de FHC. Do mesmo modo, deve-se a ele a consolidação de vários avanços institucionais, como a profissionalização da gestão nas estatais e a implantação das agências reguladoras.
No plano social, legou um novo padrão de política social, a partir do trabalho de estadista da maior primeira-dama da história, dona Ruth Cardoso, que vai deixar saudades por sua seriedade, seu espírito público, sua discrição e sua coerência.
No plano econômico residem as maiores falhas. E, aí, não adianta o álibi de Fernando Henrique, de que não poderia dar conta de todas as prioridades, como se o esforço dedicado à parte política fosse impeditivo dos esforços a serem dedicados à parte econômica.
Não foi. Podia-se ter afastado nas duas frentes, inclusive porque os pactos políticos eram precondição para os avanços econômicos. No entanto, o presidente foi vítima de alguns erros fundamentais que impediram que o país pudesse ter aproveitado melhor a situação internacional excepcionalmente favorável e dado o salto definitivo rumo ao desenvolvimento.
O primeiro erro foi a subordinação cega aos princípios do livre mercado. Esse ideologismo primário, descosturado da realidade, fez que qualquer ferramenta de gestão fosse interpretada como intervencionismo.
O segundo erro foi a completa falta de aptidão de FHC para problemas do dia-a-dia da gestão. De certa forma, sua adesão cega a esse "livre mercadismo" anacrônico, ignorando qualquer manifestação da realidade, no fundo era álibi para sua falta de vontade de tocar o dia-a-dia. Foi por isso que a noção de processo -importante para entender mudanças culturais e políticas- foi levantada até para justificar a não-solução de problemas administrativos e econômicos. Não sei quem foi o autor original, mas foi absolutamente precisa a definição de que, para FHC, existem dois tipos de problemas: os insolúveis e os que se resolvem por si próprios.
O terceiro erro foi a vaidade. Seu governo foi democrático, no sentido de respeitar as divergências. Mas absolutamente autocrático, no sentido de ignorar solenemente todas as idéias e contribuições externas.
Em longa entrevista que me concedeu no início de dezembro deste ano, FHC não conseguiu formular nem uma autocrítica sequer. Todos os erros cometidos foram de terceiros que o aconselharam mal, que não o alertaram sobre dificuldades.
Ao longo de seu governo, essa atitude confirma integralmente o que escrevi sobre ele em dezembro de 1994: o FHC vaidoso atrapalharia a obra do FHC inteligente. O inteligente construiu a transição do século. Não fosse o vaidoso, poderia ter feito o governo do século.

E-mail - lnassif@uol.com.br


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