UOL


São Paulo, quarta-feira, 31 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

As agências reguladoras e o contrato de gestão

MARIA AUGUSTA FELDMAN

O governo federal, em seu discurso inicial, questionava a existência das agências reguladoras. Agora, defende a sua existência e o seu fortalecimento, desde que monitoradas por contratos de gestão e por outros mecanismos de controle não convencionais, como a figura do "ouvidor", com papel de "fiscal" do governo, de plantão, dentro das agências. Não se trata, portanto, de uma questão conceitual, mas sim de natureza política e passa pela definição do tipo de Estado que a sociedade almeja.
O "Estado regulador" contemporâneo é caracterizado pela não-intervenção direta na atividade econômica e marcado pela crescente tendência de "desgovernamentalização da atividade reguladora", estabelecendo a separação de funções entre tarefas de orientação política da economia e as de regulação, estas exercidas por autoridades acentuadamente independentes do governo.
A criação do Estado regulador brasileiro não foi precedida de debate político ou jurídico, o que torna pouco compreendido o seu papel e justifica a ausência de formulação de uma política regulatória, sintonizada com um novo tempo. O velho modelo regulatório, "estatista e burocratizante", não mais responde às necessidades do país e aos anseios da sociedade. Nesse cenário surgiram os órgãos de regulação, entes de Estado, perenes em relação aos governos, diferentes das agências executivas, comandadas pelo Poder Executivo.
É fundamental diferenciá-las. As agências executivas, para ampliar sua autonomia, são regidas por contratos de gestão. As agências reguladoras, por sua vez, surgem da descentralização do Estado e da substituição da sua função empreendedora, o que requer o fortalecimento das funções de regulação e de fiscalização. Sua característica essencial é sua autonomia, conferida e assegurada por lei, e não pela contratualização de suas atividades.
Sob o argumento de que o contrato de gestão constitui instrumento de controle social e de aperfeiçoamento de gestão, o governo pretende ampliar seu uso para todas as agências, subordinando-as aos respectivos ministérios, especificando metas, obrigações, responsabilidades e penalidades. Essas punições são administrativas e, dizem, não envolvem a demissão dos dirigentes. Mas, se as punições são administrativas, a rigor, está se falando de tutela sobre a ação das agências e do controle dos seus atos administrativos.
Não cabe, portanto, invocar o parágrafo 8º, do artigo 37, da Constituição, que prevê o contrato de gestão apenas para ampliar a autonomia de entes da administração e não para estreitá-la. Caso não atinja as metas pactuadas, o anteprojeto prevê a aplicação de punições administrativas, como a suspensão da liberação de recursos destinados às agências, o que constitui desvio de finalidade. Tal fenômeno, que hoje já ocorre indevidamente, via contingenciamento orçamentário, será oficializado. A autonomia administrativa, que engloba a gestão dos recursos orçamentários e financeiros, restará comprometida, podendo subordinar-se a critérios políticos para sua liberação.
O governo invoca o argumento do controle social, mas não avança nesse aspecto. Quer manter os controles tradicionais do Executivo sobre as agências, sem considerar que estas já são controladas pelos poderes Legislativo e Judiciário, Tribunal de Contas da União, Ministério Público... A sistemática prestação de contas à sociedade é essencial para o controle democrático das autoridades reguladoras, estando, aí sim, caracterizado o verdadeiro controle social que significa a atuação direta da sociedade sobre as ações do Estado. Cabe dizer que a autonomia e a equidistância em relação ao governo podem ser asseguradas por diferentes mecanismos de acompanhamento parlamentar.
Assim, substituir o controle do Executivo, via contrato de gestão, por ações legislativas, mediante a prestação de contas ao Parlamento, é consenso. O envio de relatórios aos ministérios de vinculação, ao Senado e à Câmara, constitui apenas parte desse processo de prestação de contas à sociedade, ou de "accountability" das agências, que consiste na sua obrigação de apresentar os resultados obtidos, devido a uma delegação de poder. O ideal seria, periodicamente, prestar contas ao Congresso e, sempre que requisitado, às comissões temáticas das Casas Legislativas. É esse o espaço adequado para o controle social, porque plural e amplamente representativo da sociedade.
O Congresso, atento, saberá, no devido momento, ajustar o rumo, fortalecendo as agências para que, garantindo a estabilidade, possam contribuir para o desenvolvimento nacional. Somente por meio do debate democrático é possível aperfeiçoar o modelo institucional das agências reguladoras e assegurar a credibilidade necessária à atração de investimentos, assim como a qualidade e o preço justo nos serviços prestados à sociedade.


Maria Augusta Feldman, 57, é presidente da Abar (Associação Brasileira de Agências de Regulação).

Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Antonio Barros de Castro.


Texto Anterior: Juros devem cair mais lentamente
Próximo Texto: Energia: Seguro faz conta de luz subir 1,9%
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.