São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 1999

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OSSOS DO OFÍCIO

Orientadora de cego faz trabalho 'invisível'

Greg Sallibian/Folha Imagem
Maria Cecília de Toledo orienta aluno deficiente visual a usar bengala e andar pelas ruas


CLEBER MARTINS
Editor de Empregos

"Ô, moça. Vê se dá a mão para o cego. Não está vendo que ele não vai conseguir atravessar?", grita, em tom de indignação, o motorista do caminhão parado no semáforo.
Sua reação não é de estranhar. A cena que presencia induziria qualquer desavisado ao inconformismo: sem demonstrar intenção de agarrar o deficiente visual pelo braço, ela o observa, meio perdido, tentando se achar na calçada, só com a ajuda de uma bengala.
"Eu sou professora dele. E ele está em treinamento", a mulher esclarece ao motorista. O aluno sorri.
Maria Cecilia Lara de Toledo, 36, formada em educação física, diz que já perdeu a conta de quantas vezes passou por essa situação. "Sou praguejada toda hora."
Pudera. A profissional desempenha uma missão ao mesmo tempo desafiadora e pouco conhecida para a maioria: dá aulas de orientação e mobilidade a deficientes visuais. Em bom português: ensina principalmente adultos que perderam a visão a se virar sozinhos, dependendo cada vez menos de quem os reboque pelo braço.
Talvez por isso Maria Cecilia se resigne com os protestos contra sua suposta falta de sensibilidade. "Quem sabe que existe professor para ensiná-los a usar bengala ou andar pela cidade?" Ainda mais, segundo ela, quando as lições parecem atos corriqueiros aos olhos de quem ignora seu trabalho.
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Ajuda recusada Mas, como poucos conhecem a atividade, não é raro que as sessões de orientação espacial dadas por Maria Cecilia nas ruas sejam interrompidas por passantes que tentam "socorrer" o deficiente na iminência de trombar com um poste.
A recusa de ajuda, muitas vezes, não é suficiente, tornando-se necessária a tradicional explicação de que se trata somente de uma aula e que ela está, sim, de olho no aluno.
Apesar do desconhecimento geral, os moradores próximos à fundação Dorina Nowill, onde Maria Cecilia trabalha, já sabem o que ocorre quando vêem a professora "passeando" pelas ruas da Vila Mariana (zona sudoeste de São Paulo) com seus "clientes", denominação adotada pela entidade para se referir aos alunos.
Ela conta, com frequência, com a ajuda dos comerciantes da área, que cedem seu espaço para o treinamento. Também é assim com os taxistas, que emprestam os carros estacionados aos deficientes visuais para que aprendam como entrar e sair dos veículos.
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Armadilhas Foi com a ajuda da vizinhança que o aluno Roberto Carlos de Lima Medeiros, 21, passou pelo "campo de provas" do bairro: caminhar entre as prateleiras de uma padaria, entrar e sair de um táxi, descer e subir nos degraus dos ônibus e manusear copos em um restaurante. Para começar o percurso, o desafio: uma rua recém-desocupada por feirantes, verdadeira pista com obstáculos.
Antes de tudo, Maria Cecilia prepara o aluno para o trajeto. "Você não precisa fazer um arco muito grande com os movimentos da bengala. Basta o espaço para você passar", diz, com voz firme, enquanto mostra o "balé".
Após as barreiras da feira, há mais percalços pela frente. Enquanto caminha na calçada e rastreia o chão, o aluno é quase surpreendido no rosto por galhos de plantas com espinhos, suspensos no muro de uma casa.
"Percebeu, Roberto? A rua está cheia de armadilhas." Ele balança a cabeça devagar, concordando.



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