São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 1999

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Aula de mobilidade é exercício de psicologia

da Redação

Roberto Carlos de Lima Medeiros, 21, ficou cego no final de 1997, após discutir com um garoto de 15 anos em um fliperama. Levou um tiro na cabeça. Sobreviveu, mas perdeu a visão, o olfato e o paladar.
Isso aconteceu onde Medeiros mora, Cidade Tiradentes (zona leste de São Paulo). O distrito policial que abrange o bairro é o 11º mais violento da capital em homicídios dolosos (intencionais), segundo os dados mais recentes da Secretaria da Segurança Pública. A cidade é repartida em 93 distritos.
Desde novembro de 1998, Medeiros é aluno da professora Maria Cecilia Lara de Toledo e de outros cinco orientadores da fundação Dorina Nowill, entre os quais há um psicólogo e uma pedagoga.
As histórias com que esses profissionais convivem não são, certamente, as mais fáceis de enfrentar. A fórmula para tentar reabilitar os alunos tem sido trabalho em conjunto, afirma a coordenadora da equipe, Ivete De Masi, 52.
Assim, as técnicas de mobilidade são articuladas com as sessões feitas com o psicólogo e a pedagoga (que ensina o braile, sistema de escrita em relevo), por exemplo. O aluno só encara as aulas na rua quando demonstra estar preparado psicologicamente.

Horizonte
"É um trabalho difícil. Quem perde a visão acha que o mundo acabou. Precisamos fazer com que redimensione toda a sua vida nessa nova condição", diz Ivete.
Por isso o programa de reabilitação exige métodos bem diferentes dos adotados na educação para crianças com cegueira congênita (que já nasceram sem poder ver).
"Imagine como explicar o conceito de horizonte para quem nunca enxergou. Já na reabilitação, precisamos ensinar técnicas mais adaptativas para os deficientes."
O contingente de portadores de cegueira total no país chega a 800 mil pessoas, segundo estimativa feita pelo Ministério da Saúde.
A fundação Dorina Nowill atende hoje, gratuitamente, perto de 40 alunos, chamados de "clientes". Na maioria dos casos, eles frequentam as sessões com profissionais especializados por um período de, no mínimo, seis meses.

Riscos
Mas o treinamento não parece fácil. Nem para o aluno nem para a equipe de apoio. "Não é raro passarmos por situações de risco", conta a professora Maria Cecilia.
Segundo ela, o maior problema está no fato de que suas aulas de mobilidade têm de ser dadas principalmente na rua, em um "ambiente não controlado", como diz.
A orientadora relata que chegou a perder de vista um aluno em meio a um quebra-quebra entre policiais e camelôs no centro da cidade, bem no momento em que treinava caminhada no calçadão.
Depois do tumulto, a professora o encontrou em uma loja. Havia sido escondido ali por outras pessoas que passavam pela rua.
Maria Cecilia diz que seu maior desafio é gerar confiança no aluno "sem ser maternalista ou se envolver emocionalmente com seus problemas". "Preciso ter uma postura atenciosa, mas distante, para não atrapalhar."

Crusoé
Em resumo: é um exercício de psicologia. E que, na maioria dos casos, funciona, garante Maria Cecilia. Medeiros, o aluno que levou o tiro na cabeça, diz o mesmo. "Cada vez que venho, volto mais contente", afirma. Vai e volta sozinho, aliás. Pega metrô e ônibus.
Antes do incidente, tinha parado de estudar na sexta série do ensino fundamental para trabalhar como ajudante de pedreiro.
Superado o baque inicial, decidiu aprender braile e voltou a frequentar uma escola. Hoje planeja se tornar auxiliar de radiologia e trabalhar na revelação de chapas em câmaras escuras. Está lendo, em braile ("até o dedo adormecer"), "Robinson Crusoé", sobre aquele personagem de Daniel Defoe (1660-1731) que, depois de um naufrágio, aprende a construir a vida em uma ilha deserta. (CM)

Fundação Dorina Nowill para Cegos: tel. (011) 549-0611.



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