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Outras Ideias

MICHAEL KEPP - mkepp@terra.com.br

Contabilidade informal

Nos EUA, um país de individualistas, a gorjeta é um gesto explícito, um desejo verbalizado de troca

Uma conversa recente me fez perceber que, apesar dos 29 anos vividos neste país, eu ainda poderia me abrasileirar mais.

Tinha acabado de fazer minha ligação anual ao contador, que não conheço pessoalmente (um amigo mútuo me deu seu nome), para tirar uma dúvida sobre impostos, algo que que ele normalmente responde em pouco tempo. Neste ano, a resposta levou meia hora. Falei: "Roberto, me deixe retribuir levando você para almoçar". Ele aceitou e acrescentou: "Mas você não me deve nada".

A reação dele a meu convite, um agradecimento quase remunerado, me forçou a perceber que não perdi meu jeito americano de retribuir. Nos EUA, uma cultura do "tempo é dinheiro", as pessoas expressam explicitamente a motivação remunerativa da reciprocidade delas, como eu fiz. Ou o fazem de modo ainda mais indelicado, dizendo "deixe-me te recompensar" ou, pior ainda, "faço questão de te recompensar!".

Nesta cultura mais cordial, as pessoas disfarçam o motivo da reciprocidade, expressando-o implicitamente.

Um brasileiro, na minha situação, poderia ter convertido uma troca de favores em uma contabilidade mais informal. Sem abrir mão da sinceridade, poderia ter dito: "Roberto, deixe eu te levar para almoçar, para a gente finalmente se conhecer".

Aqui, uma gorjeta também é um gesto implícito. Uma vez, minha nora levou uma peça de picanha para a casa da mãe e pediu à empregada que a assasse para o jantar. Mas isso atrasou a saída da empregada em uma hora. Então, minha nora colocou R$ 20 sob a alça do vestido dela, dizendo: "Leve o seu filho ao cinema".

Foi o jeito dela de dizer "compre uma cerveja", como fazem muitos aqui para agradecer por um favor.

Seria difícil contar quantas vezes um desconhecido trocou meu pneu furado sem aceitar minha oferta de uma cerveja mostrando, com isso, que o que motivou seu gesto foi unicamente um sentimento de solidariedade. E eu aceitava as recusas, entendendo a gentileza presente nessa sociedade, uma mistura de seres interdependentes. Veja o caso do mutirão.

Nos EUA, um caldeirão de individualistas, esse tipo de solidariedade é menos comum. Por isso, uma gorjeta é um gesto explícito, um desejo verbalizado de que seja feita uma troca. Essa contabilidade mais formal dificulta uma recusa. Especialmente quando se está diante de alguém que insiste: "Faço questão de te recompensar!".

MICHAEL KEPP, jornalista americano radicado há 29 anos no Brasil, é autor de "Tropeços nos Trópicos - crônicas de um gringo brasileiro" (Record)
www.michaelkepp.com.br

NA PRÓXIMA SEMANA
Mirian Goldenberg

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