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Vida Real

DENISE FRAGA

Desculpa pelo agradecida

Falamos palavras de extremo poder e não nos damos conta; somos acostumados com os sons cotidianos

Sou uma pessoa bastante distraída. Vivo esquecendo a chave do carro, o lugar que estacionei e já coloquei o triângulo duas vezes por falta de gasolina. Nada grave, mas digamos que me dou um pouco de trabalho extra.

Volto pra casa pra pegar coisas esquecidas, já levei o telefone sem fio de casa na bolsa e até tentei colocar cinto de segurança no cinema. Trivialidades para uma alma libriana.

Meu ato mais perigoso foi avançar o semáforo porque olhei para ver as horas nesses relógios de rua, o painel mudou da temperatura pro horário e eu simplesmente arranquei com o carro.

Tenho um anjo da guarda poderoso, pois esse foi o único sinal vermelho que furei. Parei em alguns verdes, é verdade, mas, apesar de cabeça de vento, sou boa motorista.

Por conta desses pequenos deslizes, descobri o poder da desculpa no trânsito. Emparelho o carro, abro o vidro e, quando o sujeito já está crispado para começar a querela, falo a palavra mágica: desculpa.

É impressionante o poder que essa palavra tem quando dita assim, no meio do ciclone. Às vezes até recebo uma buzinada atrás, mas vale a infração. É divertido ver a revolução muscular no rosto do cidadão.

Falamos palavras cotidianas de extremo poder e não nos damos conta. Gentileza, profeta urbano que circulava pelo Rio de Janeiro, insistia para que usássemos "por gentileza" e "agradecido" no lugar de "por favor" e "obrigado". Faz todo sentido.

Ao falar "obrigado", dizemos que estamos obrigados a retribuir o que nos foi feito, que nessa vida tudo precisa ser trocado, como se não fosse possível apenas receber uma graça e dizer que ficou feliz, agradecido. Imagina quantas dívidas temos por aí. Mas é melhor não inventar. O coitado do "obrigado" já anda tão em falta no mercado, imagina se tiver que virar "agradecido".

Acontece que amo as palavras e, mesmo sabendo que dói um pouco dizê-las, andei falando uns "agradecidas" por aí. Confesso que senti olhares que quase duvidavam da minha saúde mental.

Estamos acostumados com sons cotidianos, e não com pessoas nos dizendo coisas. Acho curioso, talvez por conta do meu trabalho, que exige que prestemos atenção todo o tempo no que estamos dizendo. Uma pessoa fala "bom dia" e a outra responde "bom dia", é incrível. Um dia desses resolvi responder "pra você também".

-Pra mim também o quê?

-Eu estou desejando que o seu dia também seja bom.

-Aaaahhhhhh...

E, novamente, aquele olhar. Mas tive a impressão que, com aquele bom dia estranho, minha interlocutora deu uma leve despertada.

DENISE FRAGA é atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo)

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