|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
nutrição
Comer o quê?
DENISE MOTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"Coma e deixe comer." Nessa simples máxima, que
contraria os mandamentos diet, light, anticolesterol, antigordura e congêneres
dos tempos modernos, reside
não só o prazer mas também a
saúde das refeições, sentencia o
sociólogo Barry Glassner, autor
de "The Gospel of Food" (O
evangelho da comida), livro
lançado nos EUA e em negociação para sair no Brasil.
Alarmado com a disseminação do que chama de "o evangelho do nada" na sociedade norte-americana -devido à crescente valorização dos alimentos pelo que eles deixam de ter
mais do que pelo que realmente
contêm- e definitivamente
convencido de que havia algo
de errado em seus conterrâneos depois de, em um aniversário, ter de engolir um bolo
sem ovos, açúcar, manteiga, leite e farinha, Glassner decidiu
investigar por que comer nos
Estados Unidos virou, em suas
palavras, um ato de culpa.
Após uma rotina de fast-food, foie gras, orgânicos, tacos
e o que mais lhe convidassem
para degustar e depois de vasculhar cozinhas badaladas e
obscuras, folhetos e conferências de ativistas, intermináveis
estudos e o próprio estômago, a
única -e polêmica- conclusão
a que o autor chegou está logo
no subtítulo do livro: "Tudo o
que você acha que sabe sobre
comida está errado".
Professor de sociologia na
University of Southern California, o pesquisador tem um
apreço especial pelo universo
gastronômico. Além de habitué
de restaurantes dos mais diversos calibres, seu primeiro carro
foi comprado nos tempos de faculdade graças à alta das ações
da rede de lanchonetes Taco
Bell, nas quais havia investido.
O mesmo apetite demonstra
em relação ao cardápio de neuroses que parecem multiplicar-se à velocidade da luz entre os
norte-americanos. "Cada sociedade tem suas preferências
e proibições alimentares, em
geral ditadas por ensinamentos
religiosos. A diferença hoje é
que, para um enorme número
de pessoas, comer é uma religião", escreve Glassner.
Em 1999, seu "The Culture of
Fear" sustentava que se havia construído nos EUA modos
de ver a vida e o outro baseados
no medo. Sobre esse tema, foi
um dos entrevistados do cineasta Michael Moore em "Tiros em Columbine" (2002).
Cautela
Como uma espécie de seqüência desse inventário de pavores, o sociólogo agora se dedica a destruir as principais
crenças do senso comum sobre
a alimentação. Alguns dos pontos nos quais centra fogo são,
segundo escreve, a reverência
com que são recebidos estudos
que promovem esse ou aquele
alimento, a conseqüente glorificação de certas comidas e modos de produção, a associação
que se faz entre alimentos tidos
como naturais e saúde, a relação entre obesidade e aumento
de mortalidade e a adesão impensada a produtos dietéticos.
Quanto aos artigos de baixas
calorias, Priscila Barsanti de
Paula, nutricionista do hospital
Albert Einstein, em São Paulo,
concorda: "Um alimento diet
não é necessariamente light.
Muitas vezes, esse tipo de alimento pode conter até mais calorias se comparado a um light
ou a um convencional", explica.
O diretor da Associação Brasileira de Nutrologia, Edson
Credidio, endossa: "Nem tudo
o que é light, diet, orgânico, "fat
free" etc. é saudável e, além disso, pode fazer mal à saúde
quando utilizado sem a orientação de um profissional".
O nutrólogo também faz coro
com o sociólogo ao recomendar
cautela quanto à sucessão de
descobertas que povoam o universo alimentar. "Alguns estudos são suspeitos, muitas vezes
encomendados e, por isso, efêmeros e com cunho comercial."
Mas, se para Glassner há
muita ênfase na obesidade e
pouca atenção sobre outros fatores de risco à saúde, os especialistas ouvidos pela Folha rechaçam essa visão e relembram a gravidade do problema.
"O Brasil está passando por
uma transição nutricional. Estamos deixando de ser desnutridos para ser obesos. O problema da obesidade é real",
afirma o endocrinologista
Henrique Suplicy, presidente
da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade
e da Síndrome Metabólica).
Ele diz, no entanto, que é
preciso ter cautela na hora de
aderir a dietas. "O que existe
também é que você entra em um site como a Amazon, digita
"dieta" e aparecem quase 3.000 títulos de livros de dietas hipocalóricas, com cada autor inventando
a sua. É um absurdo."
Edson Credidio alerta que a
obesidade traz riscos. "Tem de ser
dada toda a atenção à obesidade,
porque ela provoca a síndrome
plurimetabólica, que leva a hipertensão arterial, diabetes, infarto,
derrame e câncer. Os obesos têm
grande tendência à morte súbita."
Priscila Barsanti de Paula lembra que o fenômeno se tornou
uma epidemia: "Desde 1991, a Organização Mundial de Saúde
(OMS) considera a obesidade
uma doença com dimensões assustadoras. Nos EUA, cerca de
65% dos adultos têm excesso de
peso; no Brasil, cerca de 40%. Os
índices de gordura populacional
vêm aumentando em ritmo acelerado. Tornou-se uma epidemia".
Prazer e realismo
Além de relativizar os benefícios do que hoje é visto como saudável, Glassner dedica muitos parágrafos a questionar os fundamentos das críticas destinadas a
locais como McDonald's e Burger
King. Qualifica de exercício de
"esnobismo" torcer o nariz para
as redes de fast-food e advogar a
superioridade de produtos "frescos" ou de uma culinária "autêntica", confrontando vários fatos e
fantasias relacionados a esses
conceitos.
"Se a pessoa tem um hábito alimentar saudável, não há risco em
lanchar, eventualmente, em um
fast-food. O que não deve acontecer é a substituição das refeições
pelos lanches", pondera Barsanti.
Não se trata de comer indiscriminadamente e sem limites, repete Glassner ao longo de seu
"evangelho", mas de cuidar para
não embarcar em privações injustificadas. Diz ele no livro: "Mais
do que deixar que nosso paladar
seja nosso guia, permitimos que
os outros nos digam o que comer
e como pensar sobre o que comemos. Apenas se reconhecermos
os mitos, meias-verdades e processos de culpa envolvidos no que
e onde comemos é que poderemos começar a desfrutar de
maior prazer e realismo à mesa".
"The Gospel of Food: Everything You
Think You Know about Food is Wrong"
Barry Glassner; ed. Ecco; 304 págs.
Texto Anterior: + Corrida: Desbravadoras Próximo Texto: Dieta saudável não precisa ser cara Índice
|