São Paulo, quinta-feira, 01 de março de 2007
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

nutrição

Comer o quê?

DENISE MOTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Coma e deixe comer." Nessa simples máxima, que contraria os mandamentos diet, light, anticolesterol, antigordura e congêneres dos tempos modernos, reside não só o prazer mas também a saúde das refeições, sentencia o sociólogo Barry Glassner, autor de "The Gospel of Food" (O evangelho da comida), livro lançado nos EUA e em negociação para sair no Brasil.
Alarmado com a disseminação do que chama de "o evangelho do nada" na sociedade norte-americana -devido à crescente valorização dos alimentos pelo que eles deixam de ter mais do que pelo que realmente contêm- e definitivamente convencido de que havia algo de errado em seus conterrâneos depois de, em um aniversário, ter de engolir um bolo sem ovos, açúcar, manteiga, leite e farinha, Glassner decidiu investigar por que comer nos Estados Unidos virou, em suas palavras, um ato de culpa.
Após uma rotina de fast-food, foie gras, orgânicos, tacos e o que mais lhe convidassem para degustar e depois de vasculhar cozinhas badaladas e obscuras, folhetos e conferências de ativistas, intermináveis estudos e o próprio estômago, a única -e polêmica- conclusão a que o autor chegou está logo no subtítulo do livro: "Tudo o que você acha que sabe sobre comida está errado".
Professor de sociologia na University of Southern California, o pesquisador tem um apreço especial pelo universo gastronômico. Além de habitué de restaurantes dos mais diversos calibres, seu primeiro carro foi comprado nos tempos de faculdade graças à alta das ações da rede de lanchonetes Taco Bell, nas quais havia investido.
O mesmo apetite demonstra em relação ao cardápio de neuroses que parecem multiplicar-se à velocidade da luz entre os norte-americanos. "Cada sociedade tem suas preferências e proibições alimentares, em geral ditadas por ensinamentos religiosos. A diferença hoje é que, para um enorme número de pessoas, comer é uma religião", escreve Glassner.
Em 1999, seu "The Culture of Fear" sustentava que se havia construído nos EUA modos de ver a vida e o outro baseados no medo. Sobre esse tema, foi um dos entrevistados do cineasta Michael Moore em "Tiros em Columbine" (2002).

Cautela
Como uma espécie de seqüência desse inventário de pavores, o sociólogo agora se dedica a destruir as principais crenças do senso comum sobre a alimentação. Alguns dos pontos nos quais centra fogo são, segundo escreve, a reverência com que são recebidos estudos que promovem esse ou aquele alimento, a conseqüente glorificação de certas comidas e modos de produção, a associação que se faz entre alimentos tidos como naturais e saúde, a relação entre obesidade e aumento de mortalidade e a adesão impensada a produtos dietéticos.
Quanto aos artigos de baixas calorias, Priscila Barsanti de Paula, nutricionista do hospital Albert Einstein, em São Paulo, concorda: "Um alimento diet não é necessariamente light. Muitas vezes, esse tipo de alimento pode conter até mais calorias se comparado a um light ou a um convencional", explica.
O diretor da Associação Brasileira de Nutrologia, Edson Credidio, endossa: "Nem tudo o que é light, diet, orgânico, "fat free" etc. é saudável e, além disso, pode fazer mal à saúde quando utilizado sem a orientação de um profissional".
O nutrólogo também faz coro com o sociólogo ao recomendar cautela quanto à sucessão de descobertas que povoam o universo alimentar. "Alguns estudos são suspeitos, muitas vezes encomendados e, por isso, efêmeros e com cunho comercial."
Mas, se para Glassner há muita ênfase na obesidade e pouca atenção sobre outros fatores de risco à saúde, os especialistas ouvidos pela Folha rechaçam essa visão e relembram a gravidade do problema.
"O Brasil está passando por uma transição nutricional. Estamos deixando de ser desnutridos para ser obesos. O problema da obesidade é real", afirma o endocrinologista Henrique Suplicy, presidente da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica).
Ele diz, no entanto, que é preciso ter cautela na hora de aderir a dietas. "O que existe também é que você entra em um site como a Amazon, digita "dieta" e aparecem quase 3.000 títulos de livros de dietas hipocalóricas, com cada autor inventando a sua. É um absurdo."
Edson Credidio alerta que a obesidade traz riscos. "Tem de ser dada toda a atenção à obesidade, porque ela provoca a síndrome plurimetabólica, que leva a hipertensão arterial, diabetes, infarto, derrame e câncer. Os obesos têm grande tendência à morte súbita."
Priscila Barsanti de Paula lembra que o fenômeno se tornou uma epidemia: "Desde 1991, a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera a obesidade uma doença com dimensões assustadoras. Nos EUA, cerca de 65% dos adultos têm excesso de peso; no Brasil, cerca de 40%. Os índices de gordura populacional vêm aumentando em ritmo acelerado. Tornou-se uma epidemia".

Prazer e realismo
Além de relativizar os benefícios do que hoje é visto como saudável, Glassner dedica muitos parágrafos a questionar os fundamentos das críticas destinadas a locais como McDonald's e Burger King. Qualifica de exercício de "esnobismo" torcer o nariz para as redes de fast-food e advogar a superioridade de produtos "frescos" ou de uma culinária "autêntica", confrontando vários fatos e fantasias relacionados a esses conceitos.
"Se a pessoa tem um hábito alimentar saudável, não há risco em lanchar, eventualmente, em um fast-food. O que não deve acontecer é a substituição das refeições pelos lanches", pondera Barsanti.
Não se trata de comer indiscriminadamente e sem limites, repete Glassner ao longo de seu "evangelho", mas de cuidar para não embarcar em privações injustificadas. Diz ele no livro: "Mais do que deixar que nosso paladar seja nosso guia, permitimos que os outros nos digam o que comer e como pensar sobre o que comemos. Apenas se reconhecermos os mitos, meias-verdades e processos de culpa envolvidos no que e onde comemos é que poderemos começar a desfrutar de maior prazer e realismo à mesa".


"The Gospel of Food: Everything You Think You Know about Food is Wrong"
Barry Glassner; ed. Ecco; 304 págs.



Texto Anterior: + Corrida: Desbravadoras
Próximo Texto: Dieta saudável não precisa ser cara
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.