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Neurociência - Suzana Herculano-Houzel
O prazer de quebrar a cabeça
Faz dois meses que
tomei posse da mesa de jantar, único
lugar da casa com
dimensões adequadas para
hospedar a montagem de um
quebra-cabeça de 3.000 peças. Quase todos os dias, durante esses meses, eu me dirigi à mesa logo ao acordar,
quando ainda não tinha neurônios despertos o suficiente
para trabalhar, ou depois do
jantar, quando os neurônios
já não queriam mais trabalhar, para colocar algumas
pecinhas em seus lugares.
Sempre sob olhares atônitos
da minha família, claro, inquirindo constantemente
sobre o destino do quebra-cabeça quando terminado,
na esperança (vã) de que eu
eventualmente mudasse de
idéia sobre desmontá-lo.
Montar quebra-cabeças é
um prazer inusitado. O que
pode ser tão interessante em
ficar debruçado sobre uma
caixa com milhares de peças
esperando para serem desviradas, separadas e eventualmente encaixadas em seus
lugares, para então serem
desencaixadas e encaixotadas novamente? O prazer de
montar quebra-cabeças está
no processo em si, que dá ao
cérebro uma oportunidade
de fazer o que ele gosta: encontrar sentido em pedaços
de informação aparentemente desconexos e ter satisfação estética com os desenhos coloridos se completando a olhos vistos.
O sistema de recompensa
do cérebro adora quando pecinhas se encaixam. Para as
crianças, quebra-cabeças de
dimensões adequadas à paciência do seu sistema de recompensa são um ótimo estímulo à atenção, à auto-estima e à auto-suficiência.
Além disso, a prática com
pedacinhos de papelão coloridos de formatos sutilmente
diferentes é um excelente
treino para as habilidades espaciais e de memória visual
do cérebro.
Ao chegar à parte mais difícil do quebra-cabeça, o pedaço praticamente da mesma cor onde só a forma das
peças importa, descubro que,
ao cabo de dois meses, meu
cérebro ficou craque em
olhar para peças soltas e saber onde elas se encaixam. O
que para os outros parecem
peças idênticas são agora,
aos meus olhos, formas distintas com endereço certo.
Hoje é dia de colocar as últimas peças, apreciar o trabalho completado e, então,
guardá-lo, antecipando o
prazer de um dia montá-lo
de novo. Meu anúncio da devolução iminente da mesa ao
uso familiar, no entanto, não
é recebido com os gritos de
"até que enfim!" que eu esperava. Achei que meu espaço
na mesa estava incomodando mais do que estava de fato. Ou estão todos tão chocados com minha indiferença
com a perspectiva de desmontar o quebra-cabeça que
preferem deixá-lo vivo mais
uns dias...
SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de
"O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira
&2Lent) e de "O Cérebro em Transformação"
(ed. Objetiva)
suzanahh@folhasp.com.br
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