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outras idéias
Entre a arrogância e a compaixão
Penso que o terror tenha sua origem na arrogância, nesse ato de tomar só para si o poder de julgar os outros, de dar aos outros o que se pensa que merecem
Dulce Critelli
Outra vez, o terror arranha nossos olhos. Como é de seu feitio, cai sobre inocentes, de surpresa e à toa, para que voltemos a nos lembrar
dele. De fato, sinto-me provocada a dar atenção a ele e a tentar compreendê-lo -do ponto de vista não político, mas humano.
Na sua expressão política, o terror está sempre amparado por uma razão
ideológica ou religiosa. Razões supremas e sobre-humanas, pensa-se (a lei da
natureza, a lei da história, a lei de Deus), e que, por isso mesmo, justificariam
todo o mal decorrente de sua efetivação.
Mas, na vida cotidiana, nada legitima o terror, além da vontade e do interesse dos seus agentes. Guardadas as devidas medidas e proporções, são
também atos de terrorismo aqueles que invadem as cenas cotidianas: da violência doméstica à "guerra civil" que vem se instalando em algumas cidades
brasileiras e cujas primeiras manifestações já eram os "arrastões" realizados
nas praias cariocas nos anos 80.
Seja na esfera da vida política, seja na da vida privada, o ato de terror visa
submeter os outros homens à vontade do agente. Sempre através de uma
violência que não se anuncia, potencializada pelas armas e com o poder de
exterminar sem dar direito à defesa.
Em nome de que um homem pratica o terror? O que o autoriza? Qual o seu
propósito?
Penso que o terror tenha sua origem na arrogância, nesse ato de tomar só
para si o poder de julgar os outros, de dar aos outros o que se pensa que merecem -recompensa ou castigo, a vida ou a morte-, de decidir por eles, especialmente sobre o seu destino.
A razão de ser do terror é a arrogância. Não importa o motivo -se por
ódio, se por amor, se por justiça, se por verdade. O arrogante não faz acordos
nem observa regras. A lei é a sua. A palavra é a sua. O momento é o seu. A arrogância condenou à morte Jesus, Sócrates, Gandhi. Deu suporte ao nazismo, ao stalinismo, à Inquisição; sustenta fundamentalismos políticos e religiosos.
A arrogância também pode ser nossa. Ela é o alicerce das nossas intransigências, dos nossos preconceitos, dos nossos dogmatismos. Ela fala através
de nós quando nos recusamos a perder, quando nos vingamos, quando não
nos damos por vencidos, quando obrigamos alguém ao ferro das nossas
vontades. A arrogância mora no nosso desprezo e nas nossas ironias.
Se é fácil distinguir a arrogância na promoção do mal, é extremamente difícil perceber a arrogância nas boas ações. Somos arrogantes quando vamos
em socorro de alguém, mas o desencarregamos de se sustentar sobre as próprias pernas, quando assumimos pelo outro suas responsabilidades pessoais, quando escolhemos pelo outro qual deve ser o seu destino. Enfim,
quando o impedimos (por amor) de arcar com sua própria vida. A arrogância também pode estar na nossa generosidade e nas nossas utopias.
Mas, se, na vida comum, um simples deboche pode pôr fim à arrogância,
como limitá-la na vida política? Como superar a nossa própria arrogância?
Qual o seu antídoto?
Acredito que, tanto na vida política quanto na vida privada, o antídoto da
arrogância esteja, em tese, na valorização e no respeito à responsabilidade
existencial de cada homem, no reconhecimento de que cada homem é responsável pelo seu próprio destino pessoal e é co-responsável pelo destino coletivo. Essa seria a base para uma nova convivência entre os homens, pois, na
prática, o que faz calar a arrogância é a compaixão. Ter o coração com o outro, e não contra o outro. Em outros termos, ter um coração compreensivo.
Um salto para adiante na nossa condição de humanidade.
DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros "Educação e Dominação
Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos
da Condição Humana; e-mail dulcecritelli@existentia-br.com
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