São Paulo, quinta-feira, 01 de abril de 2010
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OUTRAS IDEIAS

Michael Kepp

The book is on the table


[...] FALAR UMA LÍNGUA É COMO CANTAR UMA MÚSICA; E ELA, INSISTINDO PARA QUE EU FALASSE DAQUELA MANEIRA, ME FEZ DESAFINAR

Quando, há 27 anos, fiz do Brasil meu país, aceitei um bico num curso de inglês que contratava americanos para fazer fitas de exercício: frases gravadas que os alunos deveriam repetir "ad nauseam" na esperança de algo similar sair um dia de suas bocas.
No dia do bico, uma jovem carioca me recebeu no estúdio de gravação com um "Você deve ser Maique Quepe". "Sou Mike Kepp", disse, pronunciando com duas, e não quatro, sílabas. Ela pediu, então, que eu lesse um exercício para principiantes enquanto o sonoplasta ajustava o nível de minha voz.
"The book is on the table", eu disse ao microfone, provocando a reação: "No! No! No! Diga "The boook! is on! the taaable!'", ela explicou, esticando e enfatizando cada palavra-chave como se fosse seguida de um ponto de exclamação.
Então, eu disse "The book is on the table" mais en-fa-ti-ca-men-te, mas não o suficiente para ela. Eu argumentei que ela estava pedindo uma ênfase tão exagerada que seria apropriada somente se eu estivesse dizendo: "I've just won a million dollars!" (Acabei de ganhar um milhão de dólares!).
"Pleeeez!", ela implorou, em inglês. Mas, mesmo adicionando os pontos de exclamação -"The book! is on! the table!"- , ainda não alcançara o que ela queria. Então, irritado, eu disse: "Escute aqui, senhorita! Nos EUA, alguém só diria isso tão enfaticamente se estivesse dando uma de camelô, gritando na frente dum livro em cima duma mesa numa calçada de Nova York: "The boook! is on! the taaable!".
"Good-je!", ela disse, com uma sílaba extra, demonstrando aprovação. E, já que ela se recusava a ouvir outro argumento, decidi capitular. E frases como "The boook! is on! the taaaable!" e "The caaat! is on! the chaaair!" passaram a rolar de minha língua. Pontos de exclamação mentais ajudavam a dar ênfase, assim como repetir, para mim mesmo, o mantra: "Esta! mulheeer! é idiooota!".
Continuei esse entusiasmo forçado no exercício seguinte: "Where! is the boook?", "The boook! is on! the taaaable!", "Where! is the caaat?", "The caaat! is...", e por aí vai. Ela gostou tanto do tom do diálogo que decretou ser hora de começar a gravar. Mas eu achava que já havia começado. O horror de ter de dizer tudo de novo era mais do que minha voz exausta podia suportar.
Então, eu disse em inglês: "I quit!", uma frase cujo significado ("Eu me demito!") ela pareceu ter esquecido. "You quit?", ela disse. "Yes!", eu disse enfaticamente, "The gringo! is not! on the program!".
O que deu errado? Falar uma língua é como cantar uma música. E ela, insistindo para que eu falasse meu idioma daquela maneira, me fez desafinar. Mas essa memória não me aflige quando eu e minha mulher brasileira assistimos a um filme na TV e ela diz: "É o Kirque Douglas" ou "É o Róque Údson".
Estou tão acostumado com seu jeito de acrescentar a sílaba extra a nomes estrangeiros, inclusive o meu, que agora me apresento como "Maique Quepe".


MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 27 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

www.michaelkepp.com.br

mkepp@terra.com.br

Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli


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