São Paulo, quinta-feira, 01 de outubro de 2009
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NEUROCIÊNCIA

Suzana Herculano-Houzel

Memória externa


[...] Ser uma enciclopédia ambulante não torna ninguém inteligente ou capaz de resolver problemas, mas ajuda

Franceses e americanos desde pequenos aprendem de cor, na escola, poesias e frases de abertura dos livros de seus maiores autores. Não aprendi nada disso; nosso sistema educacional não é muito fã de decoreba.
A única poesia que conheço de cor, além da batatinha-quando-nasce-se-esparrama-pelo-chão, é "Tabacaria", de Fernando Pessoa, que decorei inteira na adolescência, quando longas viagens de ônibus em grupo para fazer travessias eram animadas por sessões de declamação.
O "não decorareis" ganha ainda mais adeptos em nossos tempos modernos de memória externa: para que decorar um telefone, endereço ou compromisso, se a memória do celular os guarda para você? Para que decorar fatos e datas, se o Google e a Wikipedia os têm à sua disposição (em versões que foram aceitas por uma, dezenas ou milhares de pessoas)?
Eu entendo -e acho uma lástima- o desprezo moderno pela memória interna.
Claro, não é preciso chegar ao exagero do escritor americano A.J. Jacobs, editor da revista "Esquire", que se propôs a ler a "Enciclopédia Britânica" inteira em um ano "para se tornar a pessoa mais inteligente do mundo".
É verdade que ele tinha um projeto editorial em mente: escrever o divertido livro "The Know-It-All" (o sabe-tudo) sobre a sua experiência. Ele notou, é claro, que é impossível guardar em seu cérebro todos os fatos das 33 mil páginas.
E claro que ser uma enciclopédia ambulante não torna ninguém inteligente ou capaz de resolver problemas.
Mas ajuda -e esse é o fato desprezado por tantos de nós. Há uma diferença enorme entre apenas decorar-para-fazer-prova e decorar-para-usar-depois. O cérebro sabe fazer a diferença.
Informações inúteis, que não causam impacto ou emoção, ficam guardadas apenas uns dois dias. Já as interessantes, que causam surpresa ou algum outro impacto, que são associadas a outros fatos interessantes do seu repertório, que logo começam a ser usadas -essas ficam na memória e ajudam (e muito!) não só o seu raciocínio lógico, o reconhecimento de padrões (e das citações abundantes nas literaturas francesa e americana) e a compreensão de coisas mais complexas como facilitam a memorização.
É isso aí: memorizar se aprende memorizando. E mais: quanto mais se sabe sobre um tópico, mais fácil fica lembrar mais a respeito. Os ricos ficam mais ricos com mais facilidade. A vantagem da memória é que qualquer um pode começar a investir na sua. Todos têm o requisito necessário: um cérebro.


SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora do livro "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante) e do blog "A Neurocientista de Plantão" ( www.suzanaherculanohouzel.com )

suzanahh@gmail.com


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