São Paulo, quinta-feira, 02 de maio de 2002
Texto Anterior | Índice

outras idéias

renato janine ribeiro

Sinta raiva

Se odeio uma pessoa, a psicanálise mostra que ela não é necessariamente má: o ódio é meu, o ódio sou eu, é meu problema

Se há algo que incomoda na auto-ajuda é a insistência nas emoções boas e positivas, é a pregação de que as pessoas pratiquem o bem. Recebo com frequência, por e-mail, correntes de alto-astral que incluem até textos falsificados, atribuídos ora a Jorge Luis Borges, ora a Garcia Márquez. A intenção da auto-ajuda pode ser boa, mas não confio no resultado. E isso porque faz parte de nós ter sentimentos negativos.
Talvez a contribuição mais importante que a psicanálise tenha dado ao mundo tenha sido essa. Não foi falar de sexo ou mostrar que a criança não é tão inocente quanto Rousseau pensava, nem descobrir -ou inventar- o Édipo. Foi, isso sim, autorizar as pessoas a sentirem emoções malvistas, a começar pela raiva, pela inveja, pelo ciúme. Justamente as emoções que a auto-ajuda procura impedir que eclodam!
Ora, todos sabemos que, quando é represada, a energia acaba estourando. Psiques implodem exatamente porque o mal, o mal dentro de nós, o sentimento negativo, foi represado, reprimido até achar uma válvula de escape, geralmente péssima em termos sociais.
Lembremos, em nossa literatura, Augusto Matraga. Depois de humilhado e ofendido, esse homem mau se converte ao bem e quer entrar no céu, mesmo que seja a porrete. Segura todos os seus maus sentimentos, mas é claro que a natureza fala mais forte e... -bem, para saber como termina a história, vale a pena ler "Sagarana", de Guimarães Rosa.
Mas quer isso dizer que a psicanálise criou um vale-tudo, um "liberou-geral" dos maus sentimentos? Não, porque ela autoriza não a agir segundo os afetos hostis, mas apenas senti-los. Se nutro ciúmes por alguém, ela me faz reconhecer isso -e até me mostra que não há mal em desejar o mal. Só que, reconhecendo a hostilidade dentro de mim, percebo que ela está em minha psique, não no mundo externo.
Se odeio uma pessoa, a psicanálise mostra que ela não é necessariamente má: o ódio é meu, o ódio sou eu, é meu o problema. Ela autoriza o sentimento, mas desautoriza qualquer racionalização em cima dele.
Passamos o tempo construindo discursos complicados para provar como os outros nos fizeram mal. Marotamente, a psicanálise aceita esses discursos -só que para logo depois mostrar que são apenas discursos, que não dizem a verdade sobre as outras pessoas, só a dizem sobre mim. Por isso ela libera, ao permitir o ódio -e cura ou, pelo menos, melhora a vida das pessoas ao desligar o ódio dos objetos externos, enganosos e remetê-lo ao sujeito, a mim que odeio, a mim que posso parar de odiar tanto. Por isso ela pode superar o ódio, enquanto a auto-ajuda só consegue prendê-lo, adiá-lo, escondê-lo.
E a questão é esta: queremos ficar em intenções não realizadas ou ir mais fundo? A psicanálise está longe de ter uma história de sucesso com seus pacientes. Sua terapêutica não me parece tão bem-sucedida. Mas sua mensagem social -aceite que você não é um anjo- continua muito libertadora.


RENATO JANINE RIBEIRO, filósofo, tratou de Augusto Matraga em seu artigo "Augusto Matraga ou a Salvação ou a Salvação pelo Porrete", em "Personae" (organizado por B. Abdala e L. Dantas Mota, ed. Senac)


Texto Anterior: Boquiaberto: Livros ensinam como comer bem
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.