São Paulo, quinta-feira, 02 de outubro de 2008
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[+]CORRIDA

Rodolfo Lucena

Defesas invadidas

Ela já tinha corrido mais de mil quilômetros quando estourou uma terrível bolha em seu pé esquerdo. Faltavam apenas duas das 18 etapas da La Transe Gaule, ultramaratona em que os atletas percorrem de 49 a 75 quilômetros por dia, cortando a França do noroeste ao Mediterrâneo.
Chiu Shu-jung, 51, mãe de dois filhos e recordista asiática em corridas de sete dias, resolveu continuar.
A ultramaratonista taiwanesa completou a prova no dia 30/8 em segundo lugar no feminino e em 17º no geral. Fechou os 1.150 km em um total acumulado de 125h07min24. Febril e com fortes dores nos pés, foi imediatamente transferida para um hospital próximo.
Vítima de uma violenta infecção de origem bacteriana, que provocou fasciite necrosante (conhecida como bactéria comedora de carne), foi transferida para um hospital, em Montpellier, com melhores condições de atendimento. Passou por sucessivas cirurgias e teve amputada a perna esquerda e parte do pé direito; no dia seguinte, outra operação tirou grande parte da carne da perna direita para evitar que a infecção se espalhasse.
Até a semana passada, ainda estava hospitalizada na França, aguardando transferência para seu país. Seu quadro geral era estável, ela já respirava sem aparelhos, mas ainda não sabia o que tinha lhe acontecido...
Raro, raríssimo, o drama vivido por essa atleta conhecida em seu país como "Mama Ultra" é resultado de uma impressionante combinação de erros, ações e omissões cujas responsabilidades estão ainda por ser apuradas.
De qualquer forma, é certo que a exaustão causada pelo exercício excessivo traz como conseqüência a redução das defesas do organismo.
Também é certo, por outro lado, que o exercício praticado com moderação só traz benefícios para o indivíduo, tanto do ponto de vista de sua saúde quanto de seu quadro geral, de bem-estar psicológico e prontidão para agir no cotidiano.
Isso é muito bonito do ponto de vista médico, que recomenda o bom senso sobre todas as coisas. Mas o bom mesmo é "extradular", expandir, exagerar, explodir, disparar em alta velocidade quando todo o corpo clama por descanso. Ninguém é capaz de mensurar o valor do prazer. Se você colocar numa balança o prazer de um lado e o bom senso do outro, quem vai ganhar?
Os médicos e treinadores devem proteger a saúde e as defesas de seus orientandos, sejam eles tranqüilos amadores, sejam insanos ultramaratonistas. Mas, às vezes, a busca do prazer e da glória, da satisfação e da alegria, derruba nossos escudos com mais vigor que qualquer bactéria comedora de carne.
Contra isso, não há defesa.
Na hora, é maravilhoso. Depois, é mais tarde.


RODOLFO LUCENA , 51, é editor de Informática da Folha, ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (ed. Record)

rodolfolucena.folha@uol.com.br

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