São Paulo, quinta-feira, 03 de julho de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

Anna Veronica Mautner


Desenterrando a pitanga


[...] FALHOS NA OBSERVAÇÃO, COMO SE DE FATO DOESSE MUITO ESPERAR, SUBSTITUÍMOS O SAZONAL PELO PERENE, ATÉ NAS PLANTAS DE VASO

Ai que saudades tenho do tempo em que eu esperava... Aguardar a chegada do tempo do morango não era nem gostoso nem sacrificado. Era da vida.
Coisas naturais freqüentemente são sem dor e sem curtição. Como não entendo de plantação, nem vou tentar explicar o que acontece com os produtos frescos -legumes, frutas e verduras- que, de sazonais, tornaram-se perenes num piscar d'olhos. Hoje tem uva o ano inteiro, antigamente era só na primavera. Imagino frutas e legumes viajando de norte a sul em veículos refrigerados, por estradas asfaltadas. Para quê? Só para eliminar a agrura de esperar?
Tendo ido para a Bahia neste verão, na temporada de umbu, fruto ainda não globalizado, encontrei montes de umbu à venda em cada esquina. Logo depois, ele iria sumir. Tive sorte de estar lá antes disso.
Assim como é importante esperar aniversário, Natal e outras festas, faz parte da vida esperar a pitanga, a amora, brotando no quintal, acompanhando o tempo do florir e do frutar delas pelos galhos. Quem queria ter o sabor delas o ano inteiro que fizesse suco, geléia ou compota. Boas donas-de-casa, econômicas como devem ser, que sabem o valor do dinheiro, só compravam na alta estação.
As primícias eram para as esbanjadoras. Tirando algumas ilações dessa mudança, só posso dizer que estamos perdendo. Quem nunca se separa não tem o prazer do reencontro.
Ficar sem pitanga e sem olhar diariamente para elas no galho, decidindo qual vamos comer e qual vamos deixar para amanhã, arriscando que o passarinho bique antes... Pensando na pitanga, lembrei-me das vozes dos feirantes. "A ervilha está atrasada neste ano, por causa da chuva."
"A manga não deu bem." A prosa de feira funcionava como ponte entre o asfalto e o ciclo das estações. Hoje não há atraso e tudo dá bem; eventualmente, por causa da seca ou das águas, o preço pode subir.
Esperar pelo que é regulado não pela vontade de uma pessoa ou de um governo, mas sim pela natureza e seus ciclos, é parte da educação do imaginário de cada um de nós. Empobrecê-lo ataca o mundo interno das emoções e fantasias. É um plantar de tédio.
Legumes raros, como repolho-crespo e couve-rábano, continuam sendo de estação, mas poucos os consomem. Eu ainda espero a chegada da couve-rábano deste inverno. Estou com boca para comê-la com o tempero da minha mãe.
Esse atropelo da espera influi até nas plantas de dentro de casa. Falhos na observação, como se de fato doesse muito esperar, substituímos o sazonal pelo perene, até nas plantas de vaso. Os jardins de hoje parecem feitos para serem iguais o ano inteiro.
A força das palmeiras, da grama, das sempre-vivas e das maria-sem-vergonha está aí para comprovar que queremos o ano sempre igual. O mundo vai mudando, independentemente das forças da natureza, que tem um jeito lento de se transformar. Por que queremos que o tempo pare em nossa volta? Terá algo a ver com a morte?


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br



Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli


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