São Paulo, quinta-feira, 03 de novembro de 2005
Próximo Texto | Índice

Saúde

Curas ancestrais

TATIANA DINIZ
DA REPORTAGEM LOCAL

Na mata atlântica brasileira, cortes e feridas têm remédio certo: macerado de folhas de aroeira em aguardente, conhecido há muitas gerações como cicatrizante e analgésico. A infusão das folhas é usada internamente para combater o reumatismo. Já as folhas frescas são mascadas pelos habitantes dessa região para curar males da boca, como gengivites.


Busca pelo "natural" aproxima urbanos da medicina tradicional

Na Amazônia, dor de cabeça se trata com suco de folhas frescas de chicória. O chá da raiz é dado às crianças gripadas e, se mais concentrado, é oferecido às mulheres que enfrentam partos difíceis, para que expulsem os restos da placenta.
Matas e florestas brasileiras continuam sendo a principal farmácia de uma fatia da população que está longe dos centros urbanos. E, na esteira da valorização do "natural", os povos "brancos" tentam se aproximar desses modos de cura. É a medicina da floresta ganhando espaço na vida urbana, enquanto a ciência tenta aprender as lições contidas no conhecimento tradicional e investigar seus efeitos.
As propriedades medicinais existentes na biodiversidade brasileira vêm mobilizando as atenções de centros de pesquisa do país. Apenas no livro "Plantas Medicinais na Amazônia e na Mata Atlântica" (ed. Unesp, 604 págs., R$ 80), os pesquisadores Luiz Claudio Di Stasi e Clélia Akiko-Hiruma Lima, da Unesp (Universidade Estadual Paulista), catalogaram 135 espécies medicinais citadas por 110 moradores da Amazônia e 170 da mata atlântica. Muitas espécies têm dados farmacológicos comprovados por estudos científicos, outras não.
"As pesquisas farmacológicas com plantas medicinais oferecem novas opções terapêuticas para muitas doenças com medicamentos já disponíveis, bem como para aquelas ainda sem alternativas de tratamento", comenta Clélia.
Mas é preciso conduzir estudos esmiuçados. "Cada planta, cada parte dessa planta e cada forma de preparação dela é composta de milhões de substâncias químicas. Em conjunto, essas substâncias podem exercer ação terapêutica ou tóxica. Interagindo entre si, podem potencializar seus efeitos ou até antagonizar sua ação final", explica a especialista.
Não é de hoje que a ciência recorre ao conhecimento ancestral. "Em 1800, tudo o que os médicos usavam era natural. Com a Segunda Guerra Mundial, adentramos na era da produção sintética de medicamentos", relata Maria Elisabeth van den Berg, pesquisadora do Museu Emílio Goeldi, em Belém (PA), e autora de uma tese de doutorado sobre contribuições das plantas medicinais da Amazônia para a medicina brasileira, defendida na Universidade de São Paulo.
Para a pesquisadora, um caminho de volta às curas naturais começou a ser percorrido há duas décadas. "Os remédios sintéticos causaram efeitos colaterais desastrosos. Isso fez a Europa voltar-se ao conhecimento tradicional. A talidomida foi um divisor de águas", diz.
Na década de 60, a talidomida, droga sintetizada na Alemanha e prescrita a grávidas contra enjôos, foi retirada do mercado após causar severas más-formações fetais. Há relatos de que 10 mil bebês foram vítimas da medicação.

SINCRETISMO
Nesse cenário, as florestas brasileiras -principalmente a Amazônia- passam a figurar como potenciais celeiros de descobertas.
"Essa medicina é chamada de "da floresta", mas na verdade ela é extremamente sincrética. A Amazônia é um caldeirão de misturas. Dos índios, vem a maioria dos remédios antiinflamatórios e analgésicos, pois eles se ferem muito no mato. Eles também são os descobridores de substâncias paralisantes usadas na caça. Dos negros, vêm vários conhecimentos ligados aos problemas renais. E os brancos introduziram espécies originárias de outras regiões, como ervas da China e da Índia", diz Maria Elizabeth van den Berg.
Ela acredita que a pesquisa da medicina tradicional brasileira merece sistematização. "Há vários grupos de pesquisa atuando, mas é preciso estruturar isso. Pesquisar esses remédios não é caro, o maior obstáculo é a burocracia."


Embora já bastante difundido nos principais centros urbanos do país, o uso do kambô (vacina do sapo) não é permitido pela Anvisa

Na floresta Nacional do Purus, na divisa do Amazonas com o Acre, funciona, há três anos e meio, o Ideaa (Instituto de Etnopsicologia Amazônica Aplicada). Nele, uma equipe formada por um psiquiatra, um antropólogo e cinco psicólogos, entre outros colaboradores -quase todos estrangeiros-, toca um projeto cuja proposta é "usar as técnicas da gente da floresta para curar doenças".
O psiquiatra espanhol Jose Maria Fabregas é um dos idealizadores do instituto. Em parceria com a Universidade de Madri, ele realizou um estudo comparativo entre usuários regulares e não-usuários de ayahuasca (bebida sagrada produzida a partir da fervura de duas plantas nativas da floresta amazônica, um cipó e folhas de um arbusto), que será publicado na Europa no próximo mês.
O psiquiatra defende a utilização médica da substância. "É um expansor de consciência que incrementa a capacidade de olhar para si mesmo e de seguir adiante, de rever a vida sob novas perspectivas. Dessa forma, ajuda nos diagnósticos de estresse pós-traumático. Pode auxiliar, por exemplo, a superar episódios de maus-tratos ou de abuso sexual, libertando a vítima de bloqueios emocionais", comenta.
As instalações do instituto têm capacidade para receber 12 hóspedes por vez. "Recebemos basicamente dois grupos de pessoas. O primeiro deles está em busca de autoconhecimento. O segundo é formado por dependentes de entorpecentes como cocaína e crack que querem se livrar do vício", conta Fabregas. A estada mínima recomendada pela equipe é de um mês, para os que querem apenas se conhecer melhor, e de três meses, para os que vão com o objetivo de se desintoxicar.
Os internos são imersos numa miscelânea de técnicas que passa pelo uso regular da ayahuasca e por aplicações da vacina do sapo combinados a sessões de ioga, pilates e meditação. A medicina convencional não é descartada. "Se necessário, usamos remédios convencionais. O que fazemos é "traduzir" o conhecimento tradicional para nós, povos ocidentais. Combinamos essas técnicas com as da psicologia acadêmica", diz o psiquiatra.

PAJELANÇA URBANA
Banhos, garrafadas, florais da floresta. Quem entra no consultório da acupunturista e terapeuta floral Sônia Valença de Menezes, em São Paulo, vai provavelmente receber uma receita assim para atenuar seus males, sejam do corpo, sejam da alma. "A medicina da floresta dá a chance de tratar corpo e espírito", observa Sônia. "Nada do que uso fui eu que pesquisei. Só aprendi. Os pesquisadores desses remédios estão na floresta."
Ela diz que a procura por esse tipo de acompanhamento vem aumentando e se dá basicamente boca a boca. E o que conduz as pessoas à trilha que liga selva e cidade é a busca por bem-estar. "Recebo muitos estressados. Para esses, recomendo pimenta-longa, que acalma os pensamentos, e banhos de carobinha, que soltam o que está obstruído."

VACINA DO SAPO
Os índios katukinas, no Acre, são os detentores do conhecimento tradicional da vacina do sapo, o kambô. A palavra é usada tanto para se referir ao anfíbio Phylomedusa bicolor quanto ao etnofármaco obtido da secreção desse animal.
"Para os índios, o kambô é um remédio que tira a "panema", o estado de espírito negativo que causa doenças", comenta Bruno Filizola, coordenador técnico do Programa Brasileiro de Bioprospecção do Ministério do Meio Ambiente.
O programa concentra esforços para chegar à regulamentação do uso da vacina do sapo, hoje aplicada indevidamente em capitais brasileiras.
No mês passado, a digitadora S.F., 28, fez uma aplicação da substância em Brasília. "Soube que um índio do Acre estava na cidade e fui procurá-lo", conta. "O índio recomendou que eu tomasse quatro copos de água e fez cinco furinhos na batata da minha perna direita. Com a ponta de um canivete, passou a secreção do sapo em cada furinho e me mandou sentar numa cadeira num gramado. Comecei a sentir uma pressão muito grande na cabeça. Meus olhos se encheram de lágrimas e meu nariz começou a escorrer. Senti um mal-estar horrível. Na hora, cheguei a me arrepender de ter feito aquilo. Vomitei várias vezes durante aproximadamente 20 minutos. Depois estava me sentindo muito bem. Saí de lá mais leve e hoje, duas semanas depois, tenho muito mais disposição para fazer tudo que preciso", diz.
Embora já bastante difundido nos centros urbanos do país, o uso do kambô é proibido pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). E, enquanto o Ministério do Meio Ambiente busca desenvolver pesquisas para o desenvolvimento de remédios a partir da secreção do sapo, mais de 20 pedidos de patente da substância já foram feitos por laboratórios estrangeiros. Há rumores que, em 2004, um laboratório norte-americano chegou a vender a vacina pela internet.
"Estamos buscando uma forma justa, ética e segura de transformar o kambô em algo sustentável. Qualquer remédio que apareça baseado no conhecimento tradicional deve levar à repartição de benefícios com a comunidade detentora desse conhecimento", ressalta Bruno Filizola.
Também é do coração do Acre que vêm os florais da Amazônia, cuja pesquisa é liderada pela terapeuta floral Maria Alice Campos Freire, da ONG Centro Medicina da Floresta. "Os florais já estão no mercado", diz Maria Alice. "São essências de um poder impressionante porque recorrem à força original da floresta intocada. Nos últimos dois anos, a procura vem aumentando bastante", relata Lizete de Paula, proprietária da Florescentia Essências Florais, que comercializa os florais no Rio de Janeiro. O assunto estará em pauta durante o 2º Conflor - Congresso Brasileiro de Florais Nacionais (de 12/11 a 15/11, no Rio).

CAUTELA
Os usos dos medicamentos chamados de "naturais" enfrentam ressalvas. E é bom aprender a distinguir "naturais" de "fitoterápicos". Fitomedicamento é um remédio que tem como princípio ativo uma erva natural e cuja eficácia e segurança foram devidamente comprovadas. Esses medicamentos precisam ter uso autorizado pela Anvisa e registro no Ministério da Saúde. Para saber se o remédio é autorizado, o cliente deve observar na embalagem se há o número de registro do laboratório, como nos alopáticos.
De acordo com a clínica-geral e nefrologista Liliana Secaf, do hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo, faltam estudos científicos sobre a eficácia e o efeito adverso de muitas plantas.
"Apesar de naturais, elas podem gerar um efeito danoso em vez de benefícios", afirma, citando que alguns chás medicinais de cogumelos são tóxicos ao fígado e ao rim e podem causar câncer renal.
Já os fitoterápicos ela considera mais seguros. "Ruim é comprar ervas em feiras e se automedicar " diz.
Para o clínico-geral Flávio Dantas, professor de clínica médica da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), apesar de os remédios naturais serem mais seguros do que os alopáticos -já que contêm mais baixa dosagem de princípios ativos-, isso não quer dizer que eles não tenham efeitos adversos. "Muitas pessoas exageram. O que diferencia o remédio do veneno é a dose. Tudo que é feito de plantas tem componentes químicos. Além disso, cada pessoa é única. Uma dose que para uma não faz nada pode causar um grande efeito em outra", alerta.
Ele também lembra que é preciso ficar atento à procedência das plantas. "Muitas pessoas as compram por aí e não sabem de onde elas vêm e se têm contaminação", aponta. Segundo Dantas, o fato de existir uma padronização para os fitoterápicos torna-os mais seguros. "Com as normas da Anvisa, é possível ter segurança sobre o produto que se receita", diz.

Colaborou Flávia Mantovani, da Reportagem Local
ONDE ENCONTRAR:
Akac (Associação Indígena Katukina de Campinas) - kambo@basevirtual.com.br
www.mma.gov.br
www.floraisdaamazonia.org.br
www.conflor.net
www.ideaa.org
Florescentia Essências Florais:
tel. 0/xx/21/2285-6826


Próximo Texto: Outras idéias - Dulce Critelli: A verdade, a opinião e o exemplo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.