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Outras idéias
Dulce Critelli
A verdade, a opinião e o exemplo
Precisamos da companhia dos outros até para nossos pensamentos; precisamos, sobretudo, que pensem como nós mesmos
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Às vésperas do
referendo, a
Folha noticiou que, em
Juiz de Fora
(MG), dois homens discutiam sobre o desarmamento. Não conseguindo convencer seu adversário na
discussão, o partidário do
"não" sacou uma arma e
deu dois tiros no seu oponente.
Em discussões cotidianas
como essa e em outras similares, como os debates
políticos nas épocas de eleição ou as disputas sobre o próprio referendo,
chama a atenção o fato de ser quase impossível a
uma pessoa, quando convencida da verdade da
sua opinião, mudar de idéia. Não há argumentos, científicos, filosóficos ou religiosos, capazes
de persuadi-la. Todas as palavras são ineficazes.
Isso talvez tenha a ver com a identificação que
criamos entre nós e nossos pensamentos. É o
nosso modo peculiar de viver, são as escolhas
que fazemos e para qual destino rumamos, aquilo que nossas idéias revelam. Essa é uma característica da condição humana.
Mas, por ser também da condição humana viver e agir em conjunto, não suportamos a solidão de nossas opiniões. Precisamos da companhia dos outros até para os nossos pensamentos.
Precisamos, sobretudo, que pensem como nós
mesmos. Enquanto não convencemos os outros
da nossa verdade, parece que não nos sentimos
autorizados a agir segundo ela. A extrema liberdade da solidão humana é tanto incômoda quanto impossível.
Muitas vezes, o esforço de fazer com que os outros concordem conosco tem por base a crença
de que a verdade é sempre única e absoluta. Mas
ao menos 2.500 anos de filosofia estão aí para
provar o contrário: que a verdade tem limites.
Ela é relativa, pois depende do ponto em que nos
situamos para examinar os fatos e defini-los. E é
provisória, pois, se mudarmos o lugar da observação ou se aparecer um dado novo, o fato também se modifica.
Ao admitirmos que não existe "a verdade",
mas verdades no plural, o que em geral tememos
é o enfraquecimento da verdade. Tememos ficar
sem um parâmetro adequado que ponha ordem
na nossa convivência social diária. Esse receio
procede porque, quando convivemos com várias verdades ao mesmo
tempo, sobretudo quando
elas são contrárias entre si,
não estamos mais diante de
nenhuma verdade, mas de
meras opiniões.
Uma opinião é só uma
opinião, um ponto de vista.
Vale tanto quanto outra.
Como persuadir os outros
se todas as opiniões, em
princípio, são igualmente
verdadeiras?
No âmbito político, e segundo uma postura democrática, o debate e o voto da
maioria decidem a questão.
Mas não fazem as pessoas mudarem de opinião.
As formas ditatoriais e totalitárias usam a força
e a violência para impor sua verdade. Mas também não alteram as convicções pessoais.
Que outro modo haveria de persuadir efetivamente as pessoas que não recorresse à violência nem insistisse em argumentos inócuos?
A alternativa é o exemplo. E o exemplo de pessoas que empenham a própria vida na defesa de idéias. Sócrates, Cristo, Gandhi, entre outros, foram homens que persuadiram outros pelo próprio exemplo.
Só pelo exemplo vivo uma verdade não se enfraquece nem se torna mera opinião. O exemplo inspira o bem e o mal, convoca a ser seguido, indica o que é possível realizar. Espelhar-se num
igual para se lançar sobre possibilidades da vida,
essa é a lei da construção humana. Por isso, o
mais grave da corrupção não são os danos causados aos cofres de um país, mas o exemplo que oferece aos cidadãos.
Cada gesto e cada palavra humana tem a possibilidade de se converter num exemplo. Por isso,
é sempre conveniente lembrar Sócrates: "Apareça para si mesmo como gostaria de aparecer para os outros".
DULCE CRITELLI , professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de
Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana
@ - dulcecritelli@existentia.com.br
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