São Paulo, quinta-feira, 04 de março de 2004
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s.o.s. família

Conquista que vai do berço à adolescência

Rosely Sayão

Ultimamente, quase todos consideram a autonomia um objetivo importante a ser alcançado pela educação, seja ela praticada em casa ou na escola. A questão é que esse conceito tem gerado grandes confusões, já que pais e professores nem sempre concordam sobre auautonomia possível à criança ou ao jovem que vive determinada etapa do desenvolvimento. Por isso discordam quanto ao que se pode exigir dos filhos e alunos ou permitir-lhes. Uma amostra desse conflito está em algumas das questões levantadas por leitores na correspondência com a coluna. Vale a pena, portanto, conversar um pouco sobre o tema.
Primeiro, é bom lembrar: a autonomia é algo que se conquista, principalmente pelo aprendizado e/ou pelas oportunidades oferecidas no relacionamento com os outros para que ela possa ser exercida, experimentada. Ninguém nasce autônomo. O ser humano, ao contrário, nasce com completa ausência de autonomia. Para sobreviver e viver, a criança depende, por um longo período, dos cuidados dos adultos.
Mas, à medida que se desenvolve, ela tem acesso progressivo à autonomia. Esse processo de aquisição de autonomia termina ao final da adolescência, com a maturidade. Se, entretanto, o potencial para a aquisição da autonomia característica de determinada idade não é respeitado, todo o processo fica comprometido, já que não são as habilidades e as competências realizadas que evidenciam a autonomia da criança, e sim a atitude diante dos problemas da vida e os recursos que tem para usar na busca de soluções.
Uma leitora reagiu à coluna em que comentei o modo de tratar filhos como café-com-leite e comentou: "Tenho um filho de 18 meses, e você quer dizer que tenho que, desde já, dar a ele oportunidade de crescer e alcançar a autonomia e a liberdade?!?!".
Sim, sim, desde o nascimento esse processo entra em curso. Um filho de 18 meses pode ganhar autonomia para dormir sozinho, para começar a aprender a usar o banheiro e a deixar as fraldas, para reconhecer situações do ambiente que ainda são perigosas para enfrentar sozinho e para pedir ajuda, por exemplo. Se, apesar de ter potencial para realizar tudo isso, os adultos que o rodeiam não permitem que o faça, não exigem dele esforço nessa conquista e fazem tudo por ele, o desenvolvimento rumo à autonomia já começa a ficar comprometido. E -insisto- não se trata de treinar habilidades, mas de ensinar uma atitude de independência.
Claro que, aos 18 meses, o filho não pode, por exemplo, escolher se quer ou não ir ao médico, tomar ou não um medicamento de gosto desagradável, decidir com quem vai ficar enquanto a mãe trabalha. Do mesmo modo, nessa idade a criança não tem meios para controlar seus impulsos. E é aí que se expressa a confusão de pais e professores. Eles imaginam que a criança dessa idade ou um pouco mais já tenha autonomia para compreender uma regra e respeitá-la. Não tem.
Se uma criança não deve brincar com um objeto, a proibição deve ser sustentada pela ação dos adultos. Isso porque a criança não se regula: ainda não atingiu autonomia para tanto. Está na fase heterônima, ou seja, precisa que os adultos regulem seu comportamento.
Mas isso é bem diferente de impedir que a criança aprenda a fazer o que já tem condições de fazer. Outra leitora escreveu bem preocupada com um primo de oito anos que é tratado com proteção excessiva. Segundo ela, essa criança dorme na cama com a mãe, não pode "tomar sereno" nem ficar sem sapatos e não sabe sequer limpar-se sozinha após usar o banheiro. Como conseqüência, é um menino medroso. Pudera! Deve ter a imagem a respeito de si mesmo de que não é capaz de viver essas situações sozinho, de que não tem condições para tanto. Mas tem. Porém, dessa maneira, seu desenvolvimento fica prejudicado.
E volto a insistir: não se trata apenas de aprender a limpar-se sozinho, mas de adquirir liberdade e autonomia para viver o que já tem condições de viver com independência. Essa é a lição mais importante.


ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha); e-mail: roselys@uol.com.br


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