São Paulo, quinta-feira, 04 de março de 2004
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outras idéias

Um preconceito universal

Apesar de ser talvez o povo mais hospitaleiro do mundo, o brasileiro tem, como qualquer outro, um sentimento bairrista, de "nós contra eles", em relação a forasteiros

michael kepp

Quando vou a festas e digo a um brasileiro que me mudei dos Estados Unidos para cá há 21 anos e estou casado com uma brasileira com dois filhos por boa parte desse tempo, ele geralmente diz: "Ah, então você já é brasileiro". Mas, se alguém na mesma festa perguntar a esse brasileiro quem sou, ele invariavelmente diz que sou um gringo.
Ao me dar esse rótulo, os brasileiros não fazem nenhuma distinção entre mim e o estrangeiro que chegou aqui ontem. Apesar de eu me ver como meio americano/meio brasileiro, sempre serei considerado gringo aqui. Apesar de ser talvez o povo mais hospitaleiro do mundo, o brasileiro tem, como qualquer outro povo, um sentimento bairrista, de "nós contra eles", em relação a forasteiros. Pode-se dizer que é uma forma universal de preconceito.
Não importa que eu ame este país, meu lar adotivo, ou que torça contra a Argentina em qualquer jogo de futebol, seja qual for o adversário. Não importa que eu condene o governo Bush, especialmente sua política externa, e me desassocie da maioria americana que a apóia. Nada disso impede que alguns brasileiros, críticos dos ianques, me perguntem: "Por que vocês, americanos...?".
Talvez os brasileiros digam "você já é brasileiro" porque se sentem lisonjeados ao verem alguém que nasceu em um país rico, mas que prefere viver em um pobre. Eu me pergunto se a maioria dos brasileiros diria a um paquistanês ou a um filipino que vivesse aqui há 21 anos: "Ah, então, você já é brasileiro". Mas lembrem-se, isso é só uma teoria.
Mesmo brasileiros naturalizados sofrem com o preconceito bairrista do "nós contra eles". Esses "cidadãos de segunda categoria", como diz o cronista naturalizado brasileiro Fritz Utzeri, não podem ser oficiais das Forças Armadas, não podem ser donos de meios de comunicação nem sequer capitães de navios de cabotagem. Quando FHC nomeou Henri Philippe Reichstul presidente da Petrobras, em 1999, os sindicalistas foram contrários à nomeação simplesmente porque ele era estrangeiro (apesar de ser naturalizado).
Nem nos Estados Unidos esse preconceito bairrista é um grande impedimento ao exercício de função pública. O americano naturalizado Arnold Schwarzenegger foi eleito governador da Califórnia não só por ser astro de cinema mas também por ser imigrante em um Estado repleto de imigrantes. É difícil imaginar um brasileiro naturalizado tornando-se governador de São Paulo.
Por outro lado, os americanos não recebem a maioria dos estrangeiros de forma tão calorosa. Sua própria atitude bairrista se reflete no sentimento de que são superiores a outros povos, especialmente aos estrangeiros de pele escura. Esse -além dos ataques do dia 11 de setembro- é o motivo do duro interrogatório que o pessoal da imigração americana impõe a visitantes de países pobres.
Assim como os americanos me atacam por reprovar seu preconceito bairrista, o do "nós contra eles", os brasileiros fazem o mesmo quando escrevo crônicas que critiquem sua cultura. Em vez de considerar minha ótica forasteira um espelho para se olharem melhor, muitos brasileiros reagem com um "quem pediu sua opinião?".
Os mesmos brasileiros que me dizem "você já é brasileiro", ao ouvirem a mais leve observação crítica sobre o país, dizem: "Se não gosta daqui, vá para casa". É mais uma forma universal do preconceito.
O problema é que meu coração e minha cabeça são brasileiros demais para me permitir sobreviver a um eventual retorno para meu país de origem. Tanto é que eu me sinto mais brasileiro do que americano, por mais que não o seja, e sonho em português, ainda que nesses sonhos fale com sotaque.
Talvez o fato de eu sonhar em português devesse ser a senha para oficializar minha brasilidade. Não seria ótimo se brasileiros com atitude bairrista fossem obrigados a aceitar essa senha quando um estrangeiro que adotou este país como lar pedisse para entrar no seu clube exclusivo?


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 21 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record); site: www.michaelkepp.com.br


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