São Paulo, quinta-feira, 04 de setembro de 2008
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ROSELY SAYÃO

Filhos precoces, pais atônitos


[...] PRECISAMOS SABER QUE AS CRIANÇAS NÃO SÃO COMO NÓS, NÃO SE COMUNICAM COMO NÓS NEM VÊEM O MUNDO PELA NOSSA PERSPECTIVA

Parece que perdemos o jeito de lidar com crianças pequenas. Situações antes consideradas cotidianas, como crises de birra, gritos, choros intermináveis, manhas ou um sonoro "não!" a pequenas ordens dos pais, e que eram resolvidas de modo simples, hoje costumam deixar pais e adultos de cabelo em pé, atônitos ou impotentes.
Ao lado dessa situação, sabemos também de vários incidentes e tragédias que envolvem crianças: bebês caídos de lugares altos, esquecidos no carro ou deixados sozinhos em casa, crianças pequenas mortas em situações trágicas que envolvem adultos, outras que são espancadas e torturadas etc. Tomemos aqui essas situações extremas como sinais reveladores, tanto quanto os primeiros, de nossas dificuldades atuais de honrarmos nosso papel com as crianças -cuidar e proteger- e de nos relacionarmos com elas.
Sabemos há tempos -e pesquisas confirmaram recentemente- que bebês interagem desde muito cedo com as emoções e os sentimentos dos adultos que cuidam deles. Isso não é sinal de precocidade, como muitos pais pensam; é apenas a manifestação da característica potencial do ser humano, que é a de se comunicar.
Ouço muitos pais afirmarem com convicção que os filhos com alguns meses de vida, ou poucos anos, já sabem muito bem o que querem e sabem, inclusive, como agir para obter satisfação. Talvez seja mais sensato pensar que temos ensinado isso a eles: como os pais sentem o maior orgulho -mesmo sem saber- quando observam tais comportamentos considerados precoces nos filhos, é tal sentimento que alavanca o comportamento das crianças.
E ter filhos crescidos parece ser a melhor maneira de encontrarmos nosso espaço em relação a eles num mundo que aboliu o lugar da infância.
Um bom exemplo disso é o anseio de tantos pais de crianças com menos de seis anos que querem que a escola de educação infantil dedique parte de seu tempo a ensiná-las a escrever e a ler. Ora, muitas crianças com quatro ou cinco anos podem manifestar interesse em brincar com as letras, mas brincar não supõe ensino sistematizado, expectativas, cobranças, não é verdade? Considero até perigoso para a criança o fato de ela aprender a escrever antes de entrar no ciclo do ensino fundamental, já que ela corre o risco de ter os pais centrados nessa sua atividade tão característica do mundo adulto.
É necessário que reinventemos o lugar da infância e, portanto, também o nosso, para que as crianças possam ter a mínima garantia necessária ao seu desenvolvimento.
Sim, o mundo mudou muito, e as crianças também. Só uma coisa não mudou: elas continuam a necessitar da presença cuidadora, reguladora, protetora, dedicada e atenciosa dos adultos. Para realizar isso, precisamos saber de fato que elas não são como nós, não se comunicam como nós nem vêem o mundo pela nossa perspectiva.
Não podemos esperar que se comportem como cremos que devam se comportar porque são crianças e não um projeto de vida adulta.


ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)

roselysayao@folhasp.com.br

blogdaroselysayao.blog.uol.com.br



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