São Paulo, quinta-feira, 05 de junho de 2008
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

[+] corrida - Rodolfo Lucena

Redenção passageira

A maratona não é uma corrida. É uma atividade épica, heróica, hercúlea, transcendente. Pelo menos, é o que nos conta o fabulário dessa prova de 42.195 metros. Livros de auto-ajuda para corredores estão às mancheias nas livrarias on-line, trazendo citações motivacionais de lendas do passado.
"Somos diferentes, em essência, dos outros homens", teria dito o supercampeão olímpico tcheco Emil Zatopek. E há quem acredite. Exemplo dessa fé está no filme "Maratona do Amor", que estreou mês passado. Um sujeito que abandonou a noiva grávida no altar tenta, anos depois, reconquistar a dama. Para mostrar que mudou, tendo se tornado um cara confiável, decidiu correr uma maratona. O filme é uma bobagem, mas ilustra a idéia de expiação pelo sofrimento, de conquista e superação dos problemas pelo trabalho duro e constante.
A maratona pode ser até moeda de troca com seus santos ou deuses, se o atleta for religioso: se o pai melhorar, promete o corredor, correrá uma maratona; se o filho passar de ano, correrá uma maratona; se conseguir um aumento de salário, correrá uma maratona.
É tal e qual acender uma vela, subir de joelhos escadarias de templos, usar o cilício sob as vestes. Não funciona. Mas funciona. O fato é que correr uma maratona nos torna pessoas diferentes. Não pelo sofrimento ou pela superação da prova, mas por tudo que a decisão envolve.
O tempo que tiramos do dia, o que aprendemos sobre o nosso corpo, a determinação que temos de buscar no mais recôndito de nosso espírito, a camaradagem sem hierarquias ou exigências que encontramos nos outros corredores, a glória que descobrimos ser capazes de atingir.
Enquanto corre, o atleta se abre para o mundo, vestido sem as fantasias do dia-a-dia. Expõe-se tal e qual é, só faz o que é capaz, e sua única medida de avaliação é sua satisfação -ou insatisfação.
Mas não basta. A paz interior é passageira. Em abril passado, após correr a maratona de Boston, supra-sumo das provas de rua, um corredor foi para o hotel em que estava hospedado, discutiu com a mulher e tentou matá-la pisando-lhe na garganta.
No fim da prova, o corredor volta a ser o mesmo político corrupto, amante traidor, patrão explorador, funcionário relapso ou qualquer outra coisa que sempre foi.
Quem quer ser do bem -seja o que for que isso signifique- precisa correr mais do que 42.195 metros, por mais que a maratona seja heróica ou transcendente. Tem de correr a vida inteira. E, quando cansar, precisa correr mais um pouco.


RODOLFO LUCENA, 50, é editor de Informática da Folha, ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (ed. Record)
rodolfolucena.folha@uol.com.br
www.folha.com.br/rodolfolucena

"Eu tive uma sensação de superação, terminando a prova. Sensação de conquista, de vitória, de que não existe nada que tu não possas fazer te determinando. Foi uma virada na minha vida. Eu entrei uma pessoa, uma mulher nesse treinamento da China, e terminei outra."
Nara Elisa Welles Cardoso, fonoaudiáologa e corredora amadora, sobre sua primeira maratona, em 2007, na Grande Muralha da China




Texto Anterior: Inspire, respire e transpire: Relax a dois
Próximo Texto: Nutrição: O lado quente do Japão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.