São Paulo, quinta-feira, 05 de agosto de 2004
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Jornadas espirituais

Cada vez mais pessoas escolhem roteiros de viagem em busca de confirmação de fé ou de autoconhecimento

IARA BIDERMAN
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Para um número cada vez maior de pessoas, viajar apenas por turismo não basta. O viajante de corpo e alma busca algo além de lazer ou consumo: ele parte ao encontro da espiritualidade ou do seu "eu verdadeiro". Toda viagem espiritual é um movimento em busca de um centro, exterior e interior. Em geral, o destino geográfico é um lugar sagrado, geralmente ligado a uma religião. Mas a meta é o reencontro com um centro mais subjetivo: o reflexo da presença divina em cada um ou com uma parte de si da qual a pessoa está afastada, diz Armando Colognese, chefe do departamento de formação em psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.
"O deslocamento espacial em busca do sagrado sempre esteve presente na história da humanidade", diz Yone de Carvalho, chefe do departamento de história da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC- SP). Há cerca de 2.000 anos, por exemplo, cristãos dirigem-se aos lugares considerados sagrados como Roma, na Itália, e Jerusalém, em Israel. Na Idade Média, a estabilidade econômica e social e o poder que a religião exercia sobre a sociedade ocidental fez recrudescer esse movimento, e as peregrinações foram fonte de enriquecimento dos locais que guardavam relíquias.

Ultrapassar limites
Mas, se "qualquer viagem pode redimensionar fronteiras", como diz Giselle Groeninga, da Sociedade Brasileira de Psicanálise, o viajante espiritual dá um passo a mais: o destino e o roteiro possibilitam o rompimento das fronteiras entre o aqui e o além e a superação de limites individuais.
Alguns elementos comuns aos diversos "pacotes" desse tipo de viagem -que incluem visitas a lugares sagrados, contato com a natureza e retiros- facilitam esse movimento de transformação. A quebra da rotina e o alto grau de envolvimento aumentam a intensidade da experiência. "Essas viagens podem trazer mudanças, desde que já venham sendo há tempos preparadas internamente pelo viajante. O des locamento terá o significado de um ritual de passagem", acredita Groeninga.
Normalmente, os "roteiros da alma" proporcionam maior espaço para a reflexão porque limitam (ou até eliminam) os estímulos de consumo e as atividades de lazer, ao mesmo tempo que oferecem desafios para serem superados. "Essas características podem favorecer dois tipos de pessoas", segundo Colognese: as que, num momento de crise, resolveram dar uma guinada e as que precisam ganhar autoconfiança para enfrentar a vida adulta.
Há também aqueles que procuram apenas um alívio imediato para as pressões cotidianas. O psicólogo Ricardo Sasaki, diretor do centro budista Nalanda, em Belo Horizonte, conta que cerca de metade dos participantes de cursos de meditação de fim de semana não são budistas. "Na consciência popular, há uma idéia vaga de que a meditação é uma coisa boa, relacionada à calma e ao relaxamento. Muitos fazem esse tipo de retiro para aprender algo prático que podem aplicar em suas vidas", diz.
Céticos em geral e estressados em particular têm boas justificativas científicas para hospedar-se nesses mosteiros: imagens escaneadas de cérebros de monges budistas confirmam os efeitos relaxantes da meditação. Para os adeptos, no entanto, o que importa nesses retiros é a saída do mundo e a volta ao centro. Nem sempre é fácil e tranqüilo -há retiros em que os praticantes ficam dias sem poder falar.
Muitos roteiros incluem o contato com a natureza, que também funciona como um fator antiestressante e reequilibrador. Para o psicólogo e estudioso de religiões Alberto Vasconcellos Queiroz, da Secretaria de Defesa do Cidadão da Prefeitura de São José dos Campos (SP), essa proximidade é a mais indicada para quem está em busca apenas de equilíbrio ou alívio psicológico. Queiroz acredita que "a natureza tem a qualidade intrínseca de refrescar a alma e, ao mesmo tempo, não impõe dúvidas sobre culpas e méritos pessoais". Se o viajante não estiver "preparado" para entender os símbolos e ritos de cada religião, não terá ferramentas para expiar essas culpas -sacrifício e penitência são elementos importantes desse tipo de viagem. O antropólogo Edin Abumanssur, do departamento de Teologia e Ciências das Religiões da PUC-SP, que atualmente realiza uma pesquisa sobre o culto a Bom Jesus do Iguape, no litoral sul de São Paulo, acha que também os viajantes de religiosidade mais difusa, ou mesmo os céticos, estão dispostos a uma espécie de sacrifício quando empreendem uma viagem de cunho espiritual. Mas, diferentemente da população que se assume religiosa (como a que vai a Iguape), "o sacrifício é voltado para o "eu", e a privação serve para superar limites pessoais, e não para fazer jus a uma graça recebida ou pedida", diz Abumanssur.

Em busca do eu
"Essas pessoas não se satisfazem com as respostas das religiões institucionalizadas e buscam soluções pessoais para a questão da espiritualidade", diz José Guilherme Magnani, coordenador do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo. No conjunto de soluções estão as viagens para lugares considerados densos de significado. Os resultados obtidos não são apenas imaginários, segundo Magnani. "No lazer espiritualizado, elas encontram uma forma mais saudável e tranqüila de ocupar o tempo livre, que é usado para buscar o aprimoramento pessoal e o cultivo das potencialidades do corpo e da mente", diz o antropólogo.
Além do aprimoramento pessoal e do efeito transformador, a viagem espiritual tem um aspecto de confirmação. No caso do peregrino religioso, ajuda a revigorar a fé que professa. Quando não é um fiel, o viajante vai em busca de uma identidade que não sabe muito bem qual é.
"A sociedade de hoje, por desfazer as tradições que vinculavam as pessoas, deixou-as desencaixadas. Isso produziu uma camada de "buscadores" atrás do conhecimento de si próprios e de outros sistemas de pensamento como alternativa aos valores liqüefeitos da modernidade", diz o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, da USP.
E é preciso mesmo viajar para que isso aconteça? "Muitas vezes é ilusão: as pessoas vão buscar fora algo que poderiam encontrar no lugar onde estão", diz o antropólogo Magnani. Para o médico espanhol Alberto Martín, autor de "Por el Camino de Santiago -Reflexiones sobre Filosfía, Arte y Espiritualidad" (Ediciones 29), o homem religioso já está em "peregrinação" antes mesmo de dar o primeiro passo em determinada rota geográfica e, a rigor, não necessita fazê-lo. "A viagem física é mais um símbolo e um suporte para a viagem interior. Mas, se surgir a oportunidade, pode ser um auxílio poderoso para esse movimento, seja pela influência espiritual transmitida por figuras e lugares santos, seja pelas experiências materiais vivenciadas no caminho, como os momentos de dificuldade ou de silêncio tranqüilo", afirma.


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