São Paulo, quinta-feira, 05 de agosto de 2004
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outras idéias

A violência, a mão e o polegar

Está na mão a origem do capricho, da precisão. Sem ela só nos resta o ataque e a autodefesa

Não passa semana sem que se ouça falar ou sem que se leia sobre as raízes da violência, especialmente da violência urbana. As hipóteses levantadas são variadas e numerosas.
Logo de início, vou destacar uma que, embora me pareça bem geral, para mim faz um enorme sentido: refiro-me à auto-estima, que, para eliminar a violência, deveria ser alta.
Mais uma hipótese que tem tudo para garantir um espaço no rol das causas mais freqüentemente citadas: vou partir não do violento, mas do não-violento.
Tenho a impressão de que a proporção de violência entre profissionais que realizam suas tarefas com o uso direto de suas próprias mãos, se não é baixa, pelo menos não é relevante. Tanto isso é verdade que, nos presídios, são ensinadas pelas terapeutas ocupacionais certas profissões, como a de alfaiate, a de costureiro, a de relojoeiro, a de marceneiro, a de seleiro ou a de padeiro.
O uso da mão para realizar tarefas mantém uma relação muito próxima com a auto-estima. Ver uma idéia que está na cabeça realizada em tecido, ferro, madeira, couro ou papel é gratificante, mexe com a auto-estima.
Em resumo, levanto a hipótese de que o aumento da violência pessoal, face a face, ocorra na proporção inversa ao aumento da quantidade de funções intermediadas por eletricidade, botão e máquinas. Ou de que quem trabalha com a mão em tarefas gratificantes melhora a auto-estima. Deixar a mão cair em desuso como transformadora do mundo é uma coisa séria, pois isso significa atrofiar o uso do que é considerado a origem do "humano": a destreza das mãos.
Nós, homens e mulheres, podemos muito mais do que apenas empurrar, derrubar, juntar, arrancar, ações que podemos perfeitamente fazer apenas com o peso do nosso corpo, dispensando a destreza da mão. Está na mão a origem do capricho, da sutileza, da precisão. Sem ela só nos resta o recurso do ataque e da autodefesa.
Quando falamos em trabalho, estamos imbuindo a noção de intenção: querer mudar, querer manter, transformar e -o que é mais importante- antever.
Eu estou trabalhando quando tiro daqui porque quero que esteja ali. Antes da ação, eu imagino.
Nós, seres humanos, usamos a imaginação, somos capazes de avaliar nosso acerto ou erro e, finalmente, sentimo-nos capazes e gratificados quando tornamos real o que antes era uma imagem na cabeça.
Trabalhar, muitas vezes, cansa e, por isso, selvagem ou urbano, atual ou antigo, o homem vem procurando delegar a outros homens muitas ações, especialmente as motoras, as braçais. Sonhamos mandar alguém fazer as coisas por nós para que nos caiba apenas verificar se o conteúdo da nossa imagem mental foi realizado a contento pela mão do outro. Àquele que faz resta a gratificação de ser capaz de atender e de agradar.
Aproximo-me do meu pequeno apocalipse do mundo dos "sem mãos". Cada vez fazemos menos. Cada vez nos sentimos menos capazes de criar e cada dia mais nos viciamos em escolher. Uns imaginaram, outros mandaram fazer, outros fizeram. A nós resta escolher.
Nos grandes centros urbanos, nem mesmo nos cabe sair procurando o que imaginamos. O marketing e o merchandising, as grandes empresas de produção e venda colocam diante de nós a maior variedade possível de tudo. Resta-nos a escolha. E assim, passo a passo, vamos deixando de usar aquilo que nos definiu como espécie. O Homo sapiens controla mão e mente, não apenas uma das duas.
Vou me permitir o exagero e a ousadia de estabelecer uma causalidade entre fazer e consumir. Direi que os "fazedores" são menos viciados em consumo em vez de dizer que os consumistas fazem menos. Será?
Há menos de 70 anos (e o que é isso na história dos homens?), a quase totalidade dos brasileiros e, quem sabe, da humanidade podia exercer a sua capacidade de escolha entre umas poucas marcas de uns poucos produtos.
O xampu, por exemplo, fazia-se em casa; sabão em barra uma dona-de-casa caprichosa também fazia em casa. Seria curioso evocar os recursos de que se lançava mão -e não porque se era pobre ou rico, mas porque se tinha o velho hábito de fazer o que se mentalizava, e não de mentalizar para depois escolher.
Dizer que o consumista é uma máquina desejante, deslumbrada, vítima do marketing e da publicidade não refresca. Agora, se eu tiver razão, o consumista é o que usa menos a mão, ou melhor, aquele que não usa o dedão. Aí podemos recuperá-lo, treinando-o, dando-lhe espaço para a experimentação. Por aí podemos evitar tédio e nome no Serasa. Sendo o consumista um cara aleijado, precisa de fisioterapia física, terapia ocupacional, não apenas mental. A ele resta, intacta, do humano a capacidade de escolher e de armazenar. É por aí que a falta de dinheiro "pega". Quem não tem dinheiro não tem o resto.
Até saúde entra nesse problema. Temos de fazer exercício desde cedo. Li nesta semana num jornal de São Paulo que as academias modernas têm espaço para as crianças se exercitarem. Mãe, pai e filhos unidos exercitam-se para manter o corpo são e belo. Fazemos exercícios, na verdade, para manter uma aptidão que pouco será usada, exceto para alongar a juventude.
Fazer musculação, alongamento, aeróbica etc. para ser desejável, para não ser ridículo e, especialmente, para ter o corpo de acordo com as roupas entre as quais temos de escolher, pois é isso o que o mercado oferece.
Fazemos ginástica para ter músculo, que não tem espaço para ser usado fora das situações de violência. Onde está a academia que exercita a mão e o dedão?


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui uma vez por mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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