São Paulo, quinta-feira, 06 de agosto de 2009
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NEUROCIÊNCIA

Suzana Herculano-Houzel

Sobre ver sons e cheirar músicas

Normal não é, no sentido estatístico da palavra. Mas também não é um problema: apenas uma variação. E, considerando o modo como os sentidos funcionam, nem é de todo inesperado que algumas pessoas experimentem um único estímulo a um único sentido de mais de uma maneira, interpretando o que entra pelas orelhas como sons e também gostos, o que chega à língua como sabor e também cor ou o que toca a pele como formas e também sons.
Essas são as pessoas sinestetas, proprietárias de um cérebro que tem sua maneira própria de processar informações dos sentidos. Nas demais, cada órgão dos sentidos só consegue ativar uma única região do córtex cerebral, a parte de fora do cérebro. De fato, o que torna visual o córtex visual é o acionamento de seus neurônios por estímulos que chegam aos olhos, e não pelos que chegam à orelha ou ao nariz. Da mesma forma, o córtex auditivo é auditivo porque é ativado por estímulos à cóclea, e não aos olhos.
Se, no entanto, alguma modificação (de origem ainda desconhecida, mas provavelmente genética) faz com que estímulos de um tipo levem à ativação de mais de um córtex sensorial, o resultado é a pluralidade sensorial: duas ou mais sensações provocadas por um mesmo estímulo. Segundo estimativas conservadoras, cerca de 1 a cada 2.000 pessoas vivem a vida dessa maneira sensorialmente rica, que de doença não tem nada, pois não atrapalha nem reduz a qualidade de vida.
Talvez a sinestesia seja ainda mais comum, pois é compreensível que muitos sinestetas aprendam a não comentar que "o interfone da sua casa tem um som vermelho vivo", que "este frango está pontiagudo na medida certa" ou que "a soma de três mais quatro dá amarelo".
Excentricidade? Alucinações? De modo algum. Para o sinesteta, a experiência sensorial dupla ou tripla é perfeitamente real, involuntária e inevitavelmente associada a certos estímulos aos sentidos -ao contrário das alucinações, causadas por ativação interna do cérebro de maneira independente do que acontece do lado de fora.
Cada caso de sinestesia é único: embora todos concordem que bananas são amarelas e violinos são estridentes, cada sinesteta tem seus sentidos adicionais acionados a seu modo. A cor do som não é, portanto, uma propriedade intrínseca do som. O que faz pensar: por que o vermelho é... vermelho? Todos concordamos sobre qual comprimento de onda chamar assim. Mas se o meu vermelho é igual ao seu, nunca vamos saber.

SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora do livro "Fique de Bem com o Seu Cérebro" (ed. Sextante) e do blog "A Neurocientista de Plantão" ( www.suzanaherculanohouzel.com )

suzanahh@gmail.com


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