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São Paulo, quinta-feira, 06 de novembro de 2003
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outras idéias - mario sergio cortella

Há muitas maneiras de dizer-se e de dizer o mundo por meio de palavras; a mais poderosa é aquela que consegue gerar palavras grávidas de imagens, como nas metáforas

O mistério do simples

Passada uma década da publicação de "O Livro das Ignorãças", do sempre centenário poeta Manoel de Barros, continua mais vivo o seu desnorteante "Uma Didática da Invenção". Nesse poema, o mato-grossense teceu chinesa constatação ao anotar: "O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. / Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. / Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. / Era uma enseada. / Acho que o nome empobreceu a imagem".
Uma imagem continua valendo mais do que mil palavras? É provável, afinal, a imagem é síntese, agrega em si múltiplos sentidos e, ao mesmo tempo, expressa com vigor a capacidade de alargar a compreensão. Lembremo-nos de que o verbo compreender vai além da idéia de entender ou saber. O seu significado original é o de incluir, envolver e abraçar e, desse modo, a imagem favorece a compreensão, isto é, facilita o alcance da abrangência. A imagem é mais clara e transparente porque não está, como a grande parte dos discursos, cheia de dobras internas ou de meandros semânticos (nela presentes, mas não dominantes). Entretanto a grande vantagem da imagem é poder ser simples. Com ela, seria possível oferecer todo o conteúdo de um parágrafo como este sem precisar tantos volteios.
Há, contudo, muitas maneiras de dizer-se e de dizer o mundo por meio de palavras; a mais poderosa dessas maneiras é aquela que consegue gerar palavras grávidas de imagens, como nas metáforas, parábolas e alegorias. Um outro jeito poderoso é trazer para a expressão das idéias uma arquitetura das palavras que seja como o essencial das imagens simples, ou seja, sem complicações. Ser simples, por contraditório que soe, é muito complicado, e isso todos dizemos. Complicado? Sim. E, por incrível que pareça, as idéias de simples e a de complicado estão etimologicamente ligadas.
O vocábulo "simples" veio para nós do latino "simplex", no qual "sim" (ou "sem") participa a noção de "um" ou "único", isto é, não-composto, tal como nas palavras "similaridade" ou "semelhante" (de um só modo). Por sua vez, o "plex" se origina do indo-europeu "plek", e este quer dizer "dobra" ou "laço". Assim, simplificado é com uma só dobra ou sem nenhuma delas, enquanto complicado é aquilo que está muito dobrado, pois o prefixo "cum" indica intensidade.
Por isso o compositor Renato Teixeira descomplica bastante o mistério ao cantar: "O maior mistério é ver mistérios / Ai de mim, senhora natureza humana / Olhar as coisas como são, quem dera / E apreciar o simples que de tudo emana. / Nem tanto pelo encanto da palavra / Mas pela beleza de se ter a fala".
Para não ficar perplexo (enredado em laçadas), é melhor explicar (com a acepção mesma de tirar as dobras, desdobrar, arrancar os laços para fora), deixando a tessitura da idéia bem lisa, aberta, evidente, sem complicações. Explicar com perfeição exige ver e ouvir por inteiro as imagens presentes nas falas recolhidas por Guimarães Rosa nos implicados cafundós. Para entender mais a simplicidade, é bom ler, reler e fruir aquilo que qualquer personagem dele singelamente diria, como "pra não nascer, já é tarde; pra morrer, inda é cedo" ou ainda "viver de graça é mais barato" e talvez "rir antes da hora engasga".
Porém mesmo quem não é desses grandes sertões também consegue ser um pouco riobaldiana. Isso nos ensina Alice Roosevelt Langsworth: "Minha filosofia é simples. Encha o que estiver vazio. Esvazie o que estiver cheio. E coce quando sentir coceira".


MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP, autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos" (ed. Cortez/IPF), entre outros, escreve aqui uma vez por mês


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