São Paulo, quinta-feira, 07 de junho de 2007
Próximo Texto | Índice

Outras idéias

Consumismo

A gente sabe que a capacidade de querer e de viabilizar o desejo tem tudo a ver com a sobrevivência da espécie. Não só dos aspectos instintivos como comer, beber e proteger-se do frio mas também de outros impulsos, como os sociais. Para que alguém seja capaz de se prover de comida, água e teto, precisa querer com força suficiente para conseguir vencer as naturais dificuldades. Mesmo em termos mais simples e primitivos, prover-se demanda esforço, cansaço e, sobretudo, atividade sistemática.
Tornou-se fácil alcançar a comida: estende-se o braço até a prateleira, aponta-se para o balconista ou faz-se uma encomenda por telefone. Bem diferente da obtenção de alimento em sociedades de coletores, pescadores ou caçadores.
Durante os milhares de anos que nos separam deles, manteve-se viva a necessidade de querer. Agora, que nem dinheiro temos de carregar, o que fazer com essa matriz mental desejosa acoplada ao nosso viver?
Atualmente o que chamamos de consumismo é "ter para ser", já que o sobreviver mudou tanto. Para uma parcela razoável da humanidade, sobreviver tornou-se fácil demais. Mas continuamos querendo, almejando como dantes, apesar de hoje vivermos na era da abundância.
Inventamos novidades que só servem para termos ainda o que querer. Queremos supérfluos com a mesma força da fome que tínhamos no tempo das cavernas. Há poucos meses, uma mulher muito rica, bonita e bem casada confessou que, apesar disso, só era feliz na Daslu. E o pior é que ela não mentia. A criação sem fim de grifes é igual a uma fome que não dá para saciar.
O que mantém viva a nossa vontade de viver é que, nem com todo o dinheiro do mundo, desaparece a nossa aptidão de desejar. Sem parar, criam-se produtos -tanto para saúde, beleza, culinária e para outros prazeres quanto remédios ou maquinaria-, tudo para economizar esforço e para gerar "conforto", desejo maior dos tempos modernos.
Poder adquirir tudo o que nos é oferecido é sinal de poder.
Só que esse poder é para quê?
O consumismo pode parecer um defeito mental, mas está atrelado ao impulso de sobrevivência. No estágio em que se encontra de exacerbação, pode vir a significar o fim do planeta.
Automóvel só não é sonho dourado de quem já o tem e pode continuar a poluir o ar que respiramos. Certos desejos são universais. Basta conhecer veículo motorizado para querê-lo, pois não há quem goste de suar carregando lata d'água na cabeça morro acima. Apenas para fabricar a torneira que traz água potável para dentro das casas, desejo geral desde a favela até a aldeia indígena, expele-se não sei quanto de CO2. Moças (ricas ou pobres) que já têm água encanada passam a querer xampu "curly", que faz cachinhos, economizando o esforço de enrolar o cabelo. E assim vamos querendo pela vida afora.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br


Próximo Texto: Correio
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.