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Outras idéias
Consumismo
A gente sabe que a capacidade de querer e de
viabilizar o desejo
tem tudo a ver com a
sobrevivência da espécie. Não
só dos aspectos instintivos como comer, beber e proteger-se
do frio mas também de outros
impulsos, como os sociais. Para
que alguém seja capaz de se
prover de comida, água e teto,
precisa querer com força suficiente para conseguir vencer as
naturais dificuldades.
Mesmo em termos mais simples e primitivos, prover-se demanda esforço, cansaço e, sobretudo, atividade sistemática.
Tornou-se fácil alcançar a comida: estende-se o braço até a
prateleira, aponta-se para o
balconista ou faz-se uma encomenda por telefone. Bem diferente da obtenção de alimento
em sociedades de coletores,
pescadores ou caçadores.
Durante os milhares de anos
que nos separam deles, manteve-se viva a necessidade de
querer. Agora, que nem dinheiro temos de carregar, o que fazer com essa matriz mental desejosa acoplada ao nosso viver?
Atualmente o que chamamos
de consumismo é "ter para ser",
já que o sobreviver mudou tanto. Para uma parcela razoável
da humanidade, sobreviver tornou-se fácil demais. Mas continuamos querendo, almejando
como dantes, apesar de hoje vivermos na era da abundância.
Inventamos novidades que
só servem para termos ainda o
que querer. Queremos supérfluos com a mesma força da fome que tínhamos no tempo das
cavernas. Há poucos meses,
uma mulher muito rica, bonita
e bem casada confessou que,
apesar disso, só era feliz na
Daslu. E o pior é que ela não
mentia. A criação sem fim de
grifes é igual a uma fome que
não dá para saciar.
O que mantém viva a nossa
vontade de viver é que, nem
com todo o dinheiro do mundo,
desaparece a nossa aptidão de
desejar. Sem parar, criam-se
produtos -tanto para saúde,
beleza, culinária e para outros
prazeres quanto remédios ou
maquinaria-, tudo para economizar esforço e para gerar
"conforto", desejo maior dos
tempos modernos.
Poder adquirir tudo o que
nos é oferecido é sinal de poder.
Só que esse poder é para quê?
O consumismo pode parecer
um defeito mental, mas está
atrelado ao impulso de sobrevivência. No estágio em que se
encontra de exacerbação, pode
vir a significar o fim do planeta.
Automóvel só não é sonho
dourado de quem já o tem e pode continuar a poluir o ar que
respiramos. Certos desejos são
universais. Basta conhecer veículo motorizado para querê-lo,
pois não há quem goste de suar
carregando lata d'água na cabeça morro acima. Apenas para
fabricar a torneira que traz
água potável para dentro das
casas, desejo geral desde a favela até a aldeia indígena, expele-se não sei quanto de CO2. Moças (ricas ou pobres) que já têm
água encanada passam a querer
xampu "curly", que faz cachinhos, economizando o esforço
de enrolar o cabelo. E assim vamos querendo pela vida afora.
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed.
Ágora)
amautner@uol.com.br
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