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São Paulo, quinta-feira, 07 de agosto de 2003
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outras idéias - anna veronica mautner

O sol, a água do poço, a lenha e o carvão nos davam muito mais trabalho, mas nos tornava mais independentes

Das marmitas às "quentinhas"

Neste último século, acho que estamos todos cansados de saber, a velocidade das mudanças e a introdução de novas maneiras de produzir vêm atropelando implacavelmente nossos hábitos e nossos costumes. Penetram no âmago do nosso cotidiano, fazendo de cada um de nós verdadeiros desmemoriados. Quem lembra ou sabe como se conservavam alimentos antes da geladeira? E, antes dos absorventes higiênicos industrializados, como é que era? O que foi feito dos profissionais que iam à casa dos ricos misturar o fumo e fazer cigarros ao gosto do freguês para a quinzena ou para o mês? E a tinta e o mata-borrão? Foram relegados aos antiquários. E quantos taquígrafos e estenógrafos restam neste mundo? Chulear caiu tanto em desuso que eu nem sabia escrever a palavra chulear. Já vai longe o tempo em que aprendiz de costureira começava chuleando. Hoje o aprendiz foi substituído pelo overloque. Ganha-se rapidez e perde-se treinamento para o capricho.
O lugar da casa que sofreu o maior impacto da modernidade foi a cozinha. A disseminação e a democratização do calor e do frio (fogão e geladeira) vieram atreladas à transformação fantástica da distribuição de energia, a saber, da eletricidade e do gás. Isso tudo não ocorreu sem muitos percalços. Da lenha e do carvão fomos ao fogareiro, ao fogão elétrico, e, finalmente -há cerca de 50 anos-, surgiu o botijão com sua extraordinária logística de distribuição. Dos palácios às favelas, lá está o botijão e os caminhões que tocam música para anunciar a sua chegada. O que temos de gás encanado não creio que atenda a uma porcentagem grande dos consumidores do país.
E o frio chegou também. Já vai longe o tempo em que pedras de gelo de um metro de comprimento eram jogadas nos terraços das casas, de onde rapidamente iam para as geladeiras de madeira, pequenas, modestas, nas quais se guardava um tanto de alimento.
Algumas coisas desapareceram com o fim do carvão e da lenha. Arear com areia e cinza para dar às nossas panelas o brilho -orgulho da dona-de-casa- que as das vizinhas não têm não se usa mais. No interior, às vezes vemos panelas nas cercas, brilhando ao sol. O aprendizado da costureira era no chuleio; o da dona-de-casa era no tanque, na pia e no quarador.
Pequenos desafios diários. Individuais. Tudo atrelado à infra-estrutura. Um apagão ou uma alta do preço da energia estraçalham um orçamento e uma vida.
O que nós todos não percebemos é que essas mudanças tornam a nossa dependência do Estado e dos governos cada vez maior. A organização político-econômica interfere no dia-a-dia íntimo de cada um de nós -sem apelação. O sol, a água do poço, a lenha e o carvão nos davam muito mais trabalho, mas nos tornavam mais independentes.
Reacionária, gritarão uns. Saudosista, clamarão outros. Utópica, dir-se-á.
Perdão.
São só exemplos. É só para lembrar que é preciso perguntar àqueles que pretendemos eleger o que farão com os nossos modos de esquentar o café com leite.
O Estado, quando distante, tornava-nos adultos, dependentes tão-somente de nossa própria sabedoria. Tínhamos de ser econômicos fôssemos remediados ou pobres. Sabíamos direitinho calcular o que era melhor fazer em casa e o que era melhor mandar fazer. Se íamos comer de marmita ou não, por exemplo. Uma cozinha montada para uma pessoa só não compensava. Com a chegada do botijão e da geladeira, diminuiu a quantidade de casas que forneciam marmita. Mas não adianta chorar o leite derramado, porque o que é bom, saibam, volta -às vezes meio diferente.
Marmita não existe mais. Mas há "delivery", "quentinha" e ainda a nossa grande invenção nacional: o restaurante a quilo. A marmita virou o Tupperware onde guardamos o de hoje para amanhã. E o banho-maria virou o forninho, que virou o microondas. Mas, para isso, precisamos de eletricidade a bom preço. E sem apagão.
Quando sobe o preço da luz, do gás e do telefone, temos de voltar a fazer continhas. Ai, que saudades que eu tenho do tempo em que luz, gás, água e telefone eram "outros" no meu orçamento! Quando a energia está barata, nós consumimos liquidificador, batedeira, máquina de lavar, microondas, aspirador, microcomputador, secretária eletrônica, televisão, vídeo e tantas coisas mais que nem consigo enumerar. Quando a energia encarece, fica difícil negociar com nós mesmos o que cortar.
Mas sabe por que a marmita não pode voltar e o restaurante a quilo venceu? Só a título de ilustração. Antes, em cada dia da semana, havia um prato central, igual para todo mundo. Então tanto fazia se era cozido em casa ou na fornecedora de marmita. Na quinta-feira, era macarrão; na terça-feira, bife rolê; na quarta-feira, feijoada; na segunda-feira, tutu; na sexta-feira, peixe. Agora o trivial se dispersou e nós queremos o grande bufê do "quilo". E o entregador de marmita evaporou-se com a taquígrafa, com a chuleadeira e com a engomadeira. Hoje temos o "delivery" sobre sua moto, a digitadora e a overloquista. O que é bom volta. Não precisa chorar.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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