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Pensata
Família, por Rosely Sayão
A
década de 1950 deixou um legado interessante: a idéia de
que a configuração familiar prevalente naquela época é o melhor retrato de uma família saudavelmente organizada. Estruturada, como se diz.
O modelo teve seu apogeu
naquela década e nunca mais
-até hoje, pelo menos- conseguiu resgatar tal prestígio, a
não ser no imaginário de nossa
sociedade. Que modelo é esse?
Um homem e uma mulher se
uniam pelo casamento e juntos
ficavam até que a morte dissolvesse a relação. Dessa união,
nasciam vários filhos, que permaneciam com os pais até conseguirem autonomia de vida.
O sustento da família era garantido pelo homem. A mulher
podia trabalhar, mas preferencialmente em regime de tempo
parcial. Afinal, a função mais
importante da vida dela era
prover a família. Ao homem,
cabia abastecer a parte material. À mulher, a parte estrutural (educativa, emocional, social etc.). A mulher era o esteio
da família em tudo, menos na
questão financeira. Tal dedicação tinha seu fruto: a garantia
de permanência de seu lugar e,
portanto, de sua segurança.
Uma boa troca?
Na época, parecia que sim. As
mulheres não hesitavam em sacrificar seus anseios pessoais
para constituir uma família. E,
vamos reconhecer: os ônus não
eram pequenos.
As mulheres não esperavam
encontrar no casamento realização sexual nem afetiva, por
exemplo. E isso significava a
anulação dessas possibilidades.
O casamento durava até que a
morte os separasse, lembram-se? Infidelidade? Essa palavra
só tinha uma outra que a acompanhava: masculina. Na verdade, os homens também não esperavam encontrar tais condições no casamento. Mas a busca por satisfação sexual sempre
lhes foi assegurada.
Carreira profissional era um
sonho que não fazia parte das
aspirações da maioria das mulheres. Independência financeira, então, nem pensar! Ter
filhos era uma questão ainda
sem controle. Quem disse que
uma mulher poderia se sentir
realizada como mãe quando já
tivesse dois filhos, por exemplo? Não, os métodos de controle da natalidade ainda eram
muito incipientes. Mas uma
coisa é certa: até então, ser mãe
não era ainda um papel com excessivas exigências. Bastava ser
paciente para fazer o que fosse
preciso: cuidar de sua prole até
que ela pudesse se cuidar.
Pensando bem, por que é que
as mulheres temiam tanto "ficar para titia"? Pela insegurança do seu lugar fora de uma relação estável e socialmente
aceita com um homem como
era o casamento. Os anos dourados foram, para a mulher,
uma camisa-de-força banhada
em ouro -brilhante, mas falsa.
Mal os anos 50 terminaram,
tudo passou a mudar para as
mulheres. Partes dessas mudanças podem ser creditadas à
própria luta delas, em movimentos organizados ou não.
Partes delas ocorreriam independentemente dessa luta. Afinal, a organização social, cultural, política e econômica mudou de modo globalizado, os
costumes e os comportamentos foram democratizados.
A partir dos anos 60, a mulher pôde controlar a natalidade de forma eficaz e adaptar o
sonho de ser mãe ao tamanho
de suas possibilidades, pôde
buscar o prazer sexual mais livremente, pôde se relacionar
amorosamente com poder de
escolha, pôde decidir se queria
ou não casar e constituir família. E o casamento deixou de ser
para sempre, já que o divórcio
permitia novas chances.
Pois é: a bela quase adormecida acordou, seduzida pelo
beijo que trazia novas promessas. Ser dona-de-casa, mãe e esposa não era mais sua única
possibilidade na busca por reconhecimento pessoal e social.
A mulher ganhara ou conquistara, não faz diferença, mais liberdade: podia escolher também ser profissional em qualquer ramo do conhecimento.
Além disso, ela pôde dirigir
para si mesma boa parte da
energia que ia quase toda à família: ela passou a querer se
cuidar, a não deixar seu corpo
entregue aos caprichos da natureza. Aqui, cabe uma nota:
não podemos esquecer que as
ideologias do consumo, da busca da felicidade e da manutenção da juventude colaram na
mulher nesse período e, portanto, suas decisões sofreram
-e sofrem - suas influências.
Nesses novos tempos, a mulher experimenta e arrisca. E
uma das conseqüências imediatas dessa transformação é a
mudança da cara da família. O
novo comportamento remexe
com a família toda. Na busca
-quase desesperada- de fazer
valer seus direitos, ela casa,
busca fazer carreira profissional, apaixona-se, descasa, casa
novamente, tem filhos antes,
durante e/ou após um casamento ou até mesmo fora dele.
Como resultado, a configuração familiar e o modo de se relacionar se multiplicam.
Sem dúvida, a contribuição
da mulher para tantas alterações na família é decisiva. Não
sei se foi a mais importante,
mas foi crucial. Por quê?
Em primeiro lugar, porque,
ao deixar de ser submissa aos
padrões do papel anteriormente estabelecido para ela, a mulher passa a ter condições de
priorizar seus anseios. O que
era oportunidade se transformou em problema. Priorizar
significa escolher, renunciar. E
quem disse que a bela que acabara de acordar de um sono de
renúncias queria voltar a renunciar? Não! Depois de tantas
privações, a mulher tentou
abraçar tudo: casamento, filhos, carreira, amor, tesão etc.
E mais: a tudo quis se dedicar
com quase perfeição. De bela
quase adormecida a mulher bela e superpoderosa. Uma boa
troca? Pelo jeito, ainda não.
Nunca as conversas das mulheres -com os outros ou consigo mesmas- foram tão povoadas por palavras como culpa, desencanto, solidão, depressão, angústia, insatisfação.
Será que trocamos a camisa-de-força dourada por uma invisível? Afinal, a mulher deixou
de ser submissa ao pai, ao marido e aos padrões sociais e passou a ser escrava de suas paixões, de seus impulsos e caprichos e das múltiplas pressões.
Na relação com a família,
uma inversão: quem já foi para
ela seu principal esteio agora
procura nela seu sustentáculo.
Isso quer dizer que a família vai
bem, obrigada, por mais que digam o contrário. E a mulher,
como vai? Bem obrigada... Por
enquanto.
ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como
Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)
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