São Paulo, quinta-feira, 08 de março de 2007
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Pensata

Família, por Rosely Sayão

A década de 1950 deixou um legado interessante: a idéia de que a configuração familiar prevalente naquela época é o melhor retrato de uma família saudavelmente organizada. Estruturada, como se diz.
O modelo teve seu apogeu naquela década e nunca mais -até hoje, pelo menos- conseguiu resgatar tal prestígio, a não ser no imaginário de nossa sociedade. Que modelo é esse? Um homem e uma mulher se uniam pelo casamento e juntos ficavam até que a morte dissolvesse a relação. Dessa união, nasciam vários filhos, que permaneciam com os pais até conseguirem autonomia de vida.
O sustento da família era garantido pelo homem. A mulher podia trabalhar, mas preferencialmente em regime de tempo parcial. Afinal, a função mais importante da vida dela era prover a família. Ao homem, cabia abastecer a parte material. À mulher, a parte estrutural (educativa, emocional, social etc.). A mulher era o esteio da família em tudo, menos na questão financeira. Tal dedicação tinha seu fruto: a garantia de permanência de seu lugar e, portanto, de sua segurança. Uma boa troca?
Na época, parecia que sim. As mulheres não hesitavam em sacrificar seus anseios pessoais para constituir uma família. E, vamos reconhecer: os ônus não eram pequenos.
As mulheres não esperavam encontrar no casamento realização sexual nem afetiva, por exemplo. E isso significava a anulação dessas possibilidades. O casamento durava até que a morte os separasse, lembram-se? Infidelidade? Essa palavra só tinha uma outra que a acompanhava: masculina. Na verdade, os homens também não esperavam encontrar tais condições no casamento. Mas a busca por satisfação sexual sempre lhes foi assegurada.
Carreira profissional era um sonho que não fazia parte das aspirações da maioria das mulheres. Independência financeira, então, nem pensar! Ter filhos era uma questão ainda sem controle. Quem disse que uma mulher poderia se sentir realizada como mãe quando já tivesse dois filhos, por exemplo? Não, os métodos de controle da natalidade ainda eram muito incipientes. Mas uma coisa é certa: até então, ser mãe não era ainda um papel com excessivas exigências. Bastava ser paciente para fazer o que fosse preciso: cuidar de sua prole até que ela pudesse se cuidar.
Pensando bem, por que é que as mulheres temiam tanto "ficar para titia"? Pela insegurança do seu lugar fora de uma relação estável e socialmente aceita com um homem como era o casamento. Os anos dourados foram, para a mulher, uma camisa-de-força banhada em ouro -brilhante, mas falsa.
Mal os anos 50 terminaram, tudo passou a mudar para as mulheres. Partes dessas mudanças podem ser creditadas à própria luta delas, em movimentos organizados ou não. Partes delas ocorreriam independentemente dessa luta. Afinal, a organização social, cultural, política e econômica mudou de modo globalizado, os costumes e os comportamentos foram democratizados.
A partir dos anos 60, a mulher pôde controlar a natalidade de forma eficaz e adaptar o sonho de ser mãe ao tamanho de suas possibilidades, pôde buscar o prazer sexual mais livremente, pôde se relacionar amorosamente com poder de escolha, pôde decidir se queria ou não casar e constituir família. E o casamento deixou de ser para sempre, já que o divórcio permitia novas chances.
Pois é: a bela quase adormecida acordou, seduzida pelo beijo que trazia novas promessas. Ser dona-de-casa, mãe e esposa não era mais sua única possibilidade na busca por reconhecimento pessoal e social. A mulher ganhara ou conquistara, não faz diferença, mais liberdade: podia escolher também ser profissional em qualquer ramo do conhecimento.
Além disso, ela pôde dirigir para si mesma boa parte da energia que ia quase toda à família: ela passou a querer se cuidar, a não deixar seu corpo entregue aos caprichos da natureza. Aqui, cabe uma nota: não podemos esquecer que as ideologias do consumo, da busca da felicidade e da manutenção da juventude colaram na mulher nesse período e, portanto, suas decisões sofreram -e sofrem - suas influências.
Nesses novos tempos, a mulher experimenta e arrisca. E uma das conseqüências imediatas dessa transformação é a mudança da cara da família. O novo comportamento remexe com a família toda. Na busca -quase desesperada- de fazer valer seus direitos, ela casa, busca fazer carreira profissional, apaixona-se, descasa, casa novamente, tem filhos antes, durante e/ou após um casamento ou até mesmo fora dele. Como resultado, a configuração familiar e o modo de se relacionar se multiplicam.
Sem dúvida, a contribuição da mulher para tantas alterações na família é decisiva. Não sei se foi a mais importante, mas foi crucial. Por quê?
Em primeiro lugar, porque, ao deixar de ser submissa aos padrões do papel anteriormente estabelecido para ela, a mulher passa a ter condições de priorizar seus anseios. O que era oportunidade se transformou em problema. Priorizar significa escolher, renunciar. E quem disse que a bela que acabara de acordar de um sono de renúncias queria voltar a renunciar? Não! Depois de tantas privações, a mulher tentou abraçar tudo: casamento, filhos, carreira, amor, tesão etc. E mais: a tudo quis se dedicar com quase perfeição. De bela quase adormecida a mulher bela e superpoderosa. Uma boa troca? Pelo jeito, ainda não.
Nunca as conversas das mulheres -com os outros ou consigo mesmas- foram tão povoadas por palavras como culpa, desencanto, solidão, depressão, angústia, insatisfação. Será que trocamos a camisa-de-força dourada por uma invisível? Afinal, a mulher deixou de ser submissa ao pai, ao marido e aos padrões sociais e passou a ser escrava de suas paixões, de seus impulsos e caprichos e das múltiplas pressões.
Na relação com a família, uma inversão: quem já foi para ela seu principal esteio agora procura nela seu sustentáculo. Isso quer dizer que a família vai bem, obrigada, por mais que digam o contrário. E a mulher, como vai? Bem obrigada... Por enquanto.


ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)


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