São Paulo, quinta-feira, 08 de outubro de 2009 |
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OUTRAS IDEIAS Anna Veronica Mautner Direito de escolha
Tudo começa devagar Coisas diferentes se fazem sentir Um cheiro Vontade de azedo Ou desejo de arroz Cheiros que passavam despercebidos Ou horror de gordura E, se for tempo de pêssego Ele se torna objeto especial de desejo Há alguns dias as sensações estão se aguçando mais e mais O corpo mais presente Mais nosso Ei!!! Será? Não Só tem dois dias de atraso... Da concepção, já seriam mais de dez dias E a gente matuta: Não pode ser Nem sei se quero Assim fala a alma, mas o corpo fala diferente Pensamentos sussurram Corpo fala alto e em bom tom Em poucos dias, ele vai confirmar As regras sumiram E a gente começa a acreditar no que o corpo está contando É! Uníssonos -pai e mãe querem (é a melhor circunstância!) Voam as semanas, passam os meses O tempo ganha outra dimensão Dá para começar a contar de jeito regressivo O corpo da mulher muda, e o bebê que mal existe se movimenta e seu volume começa a receber nossos sonhos Fizemos, está feito Somos três agora Máquinas terríveis, decifradas por estranhos todos de branco, mudam tudo Anencéfalo -crânio sem cérebro É um ser diferente Nossos sonhos jamais serão captados por ele O doce vira amargo A esperança dilui-se e vira vazio A mudança do corpo não interessa mais Por que seguir até o fim? É o cérebro o lar da consciência e do humano que falta no crânio vazio Falta a luz do humano Esperar parir só para esperar uma morte?
Antigamente, antes de toda a parafernália tecnológica da medicina moderna, só íamos saber ao fim dos nove meses. Hoje sabemos antes e podemos (?) interromper o crescimento do corpo que não tem lar para a alma. Pode respirar, o coração pode bater, mas não saberá que existe. Também não pecará. Pode ser batizado, mas jamais será crismado. Não poderá confirmar sua fé, uma vez que para si próprio ele não existe. Por que obrigar alguém a esperar a vida de um dessemelhante? O anencéfalo não é nosso semelhante. Pode ter corpo perfeito, mas não é como nós. Nós somos e sabemos. Ele jamais saberá que é. Por que obrigar mulheres a levar até o fim uma gestação de dessemelhante? Não matamos e comemos tantos dessemelhantes mamíferos, peixes e aves? É proibido comê-los? É proibido matá-los? Eles vibram, respiram, crescem e morrem como nós, mas falta o mesmo que falta ao anencéfalo. Por que nos iludimos apenas com a forma semelhante se não tem o escaninho para a alma? Que resolva cada grávida de anencéfalo o que ela quer fazer. Não proponho aborto obrigatório. Proponho livre escolha. Se um dia a medicina for apta a implantar cérebro em anencéfalos, fica o dito pelo não dito. Até lá, liberdade de escolha!
ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli Próximo Texto: Pergunte aqui Índice |
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