São Paulo, quinta-feira, 09 de maio de 2002
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foco nele

Psiquiatra dedicado a famílias não-convencionais

KÁTIA FERRAZ
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Adoção de crianças de diferentes etnias, famílias compostas por casais de homossexuais ou por casais que moram em países diferentes são apenas alguns dos modelos das novas relações familiares aos quais o psiquiatra e psicólogo Vincenzo Di Nicola, 48, se dedica.
Di Nicola é chefe do atendimento de psiquiatria infantil do Hospital Maisonneuve Rosemont, no Canadá, e professor da Universidade de Montreal e da Universidade McGill. Ele esteve no Brasil no mês passado para uma série de work- shops, cujo objetivo era alertar a sociedade para a necessidade de adaptar a mente e aceitar esses novos modelos.
"Não podemos negar a nacionalidade de uma criança adotada, fingir que essa realidade não existe. A diversidade cultural está cada vez mais presente, e é preciso se reciclar para poder contribuir de forma satisfatória para o equilíbrio das gerações futuras", diz Di Nicola.
Ele conhece bem o assunto, não apenas como estudioso, mas devido a sua própria experiência de vida, de quem possui raízes multinacionais.
"Sou italiano, naturalizado canadense. Também sou judeu e tenho família brasileira. É um exemplo típico. É impossível não ter problemas culturais", diz ele. Leia a sua entrevista abaixo.

Folha - Fale um pouco da sua formação e do conceito de novas relações familiares.
Vincenzo Di Nicola - Sou psiquiatra, com formação em psicólogia e pediatra. Trabalho com crianças e famílias, atuando principalmente como psiquiatra transcultural. Procuro ajudar as pessoas a se tornarem abertas para a sociedade atual e adaptar a terapia para a nova realidade. Os conceitos e as situações familiares vêm mudando ao longo dos anos, e não podemos fingir que isso não está acontecendo. Não é mais possível acreditar em um único conceito de família. Existem as famílias miscigenadas, as homossexuais, as reconstituídas e assim vai.

Folha - O que é exatamente a psiquiatria transcultural?
Di Nicola- É uma abordagem da psiquiatria criada em Montreal que trata de problemas culturais, da relação de imigrantes, de minorias. O conceito de família está sofrendo uma mudança muito grande na sociedade. Veja, por exemplo, os imigrantes italianos ou os migrantes nordestinos no Brasil. É uma grande multiplicidade cultural que pode causar problemas de adaptação. Cidades como Amsterdã, Roterdã e outras na Europa atraem cada vez mais imigrantes. Mas existem outros locais, como Itália e Canadá, onde há menos criança do que o necessário. O resultado disso tudo é a procura por adoção.

Folha - E a adoção de crianças procedentes de outras nacionalidades causa necessariamente um problema no futuro?
Di Nicola - Veja bem, o que acontece é que muitas famílias querem simplesmente apagar a nacionalidade do bebê adotado. Cabe à mãe direcionar a aceitação do novo lar, mas sem perder a identidade. Os pais têm de enfrentar com criatividade, e não com negação.

Folha - Qual a causa dessa negação?
Di Nicola - Em muitos casos, depois de adotar um filho, o casal acaba por ter um filho biológico e, nesses casos, parece ignorar a origem do primeiro filho. Esses casos se acentuam mais quando a criança adotada não é recém-nascida, pois já tem muitos dos seus valores enraizados. Lembro-me de um casal cujos dois filhos foram adotados após a guerra civil na Guatemala. As crianças já vinham traumatizadas daquela situação, e os pais simplesmente ignoraram. Foi um longo trabalho de terapia, principalmente porque, quando iniciei o tratamento, a filha já tinha 16 e o filho, 19 anos.

Folha - E o que o casal deve fazer?
Di Nicola - O casal deve se preparar bastante antes de adotar uma criança, tentar procurar cursos que abram sua mente para outras realidades. Assumir a nacionalidade de uma criança de outra etnia é colaborar para o seu equilíbrio no futuro. Negando, os pais tentam acreditar que seus filhos são biológicos. É preciso entender que ser adotado não significa não ser amado. Outro exemplo é o do povo israelita, a metade dessa comunidade foi assassinada, não dá para passar por cima.

Folha - E no caso de pais homossexuais?
Di Nicola - O processo é o mesmo. São as diferenças culturais que contam. É por isso que coloquei o nome do meu livro de "Um Estranho na Família - Cultura, Famílias e Terapia". É preciso abordar tudo com firmeza, sem esconder nada. Quando meu irmão estava morrendo de Aids, os amigos do meu pai não visitavam a casa, psicologicamente é muito difícil. Por isso sou a favor da verdade sempre, educar para compartilhar a vida com todas as diferenças.

Folha - A orientação sexual dos pais pode influenciar o comportamento dos filhos?
Di Nicola - A psicologia sugere que não, o que influencia é não assumir, acobertar a verdade.

Folha - Com tantas nacionalidades, como o senhor se define?
Di Nicola Cabeça inglesa, coração italiano, alma judia, e sobre a parte brasileira ainda estou pensando, talvez algo corporal... (rindo).



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