São Paulo, quinta-feira, 09 de outubro de 2008
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NEUROCIÊNCIA

Suzana Herculano-Houzel

Mareada em Veneza


[...] O hipocampo, que serve de agenda com alarme embutido, fica inibido, e por isso o álcool tem efeito ansiolítico, relaxante

Não costumo beber álcool, mas a ocasião era convidativa: nosso primeiro dia de lua-de-mel em Veneza. Sentados à beira do Grande Canal, as silhuetas das gôndolas enfeitando as casas iluminadas, um copo de vinho parecia uma boa pedida.
Mas os efeitos já se anunciavam com meio copo. Os músculos já haviam relaxado e se aquecido, eu tinha a nítida impressão de fazer esforço para manter os movimentos precisos e fluidos, e o sono crescente parecia trazer o chamado do meu travesseiro de umas oito estações de "vaporetto" mais adiante. Meio copo. Ainda encontrei força mental para calcular que, com uns 12% de álcool no vinho, eu não tinha ingerido mais do que uns 10 ml de etanol puro -o correspondente a um tubo pequeno no laboratório, do volume do dedo indicador. Meu marido mal começava a sentir o sabor do vinho, e eu já estava naquele estado patético.
Está certo que mulheres dispõem de quantidades menores de álcool e aldeído desidrogenases, as enzimas que "digerem" o álcool e impedem que ele caia na circulação, mas, pelo jeito, meus níveis dessas enzimas são mínimos, e o álcool rapidamente me sobe à cabeça. Chegando ao cérebro, ele potencializa os efeitos do GABA, substância que funciona como freio natural à atividade dos neurônios. O hipocampo, que serve de agenda com alarme embutido, fica inibido, e por isso o álcool tem efeito ansiolítico, relaxante; o cerebelo e o estriado, estruturas que dependem maciçamente do GABA para ajustar os movimentos, começam a padecer de excesso de inibição, donde a perda da coordenação motora fina e do equilíbrio; a motivação e o alerta minguam, cedendo vez ao sono.
Resultado: assim que chegamos ao hotel, adormeci, de casaco e tudo -mas não sem notar, já com a cabeça no travesseiro, que o quarto "balançava" como o "vaporetto". Meu cerebelo, já com problemas para se ajustar à alternância constante entre o chão sólido e o móvel sob os pés ao longo do dia, agora embriagado, tinha jogado a toalha: eu estava duplamente mareada (mas feliz!).
Parece uma fórmula mágica para relaxar e adormecer -só dura pouco. Acordei no meio da noite sentindo enjôo e mal-estar generalizados, que resultam dos aldeídos da digestão incompleta do álcool. Por isso, um tratamento moderno para o alcoolismo são inibidores enzimáticos, que fazem com que a menor dose de álcool já cause enjôo. É o meu consolo: desse jeito, não há como me tornar alcoólatra.


SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora do livro "Fique de Bem com o Seu Cérebro" (ed. Sextante) e do site "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (www.cerebronosso.bio.br)

suzanahh@folhasp.com.br


Texto Anterior: Esquizofrenia D
Próximo Texto: Treino sem dor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.