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FITNESS
Treino sem dor
Ortopedistas, fisioterapeutas e professores identificam epidemia de lesões causadas pelo treino errado na maioria das 10 mil academias do país
Felipe Reis/Folha Imagem
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SUPINO SEM SACRIFÍCIO
Reabilitado após uma lesão no ombro e outra no quadril, o economista Rafael Biral faz o supino inclinado em segurança, sem descer o braço além de 90 graus, na sala de fitness do seu prédio
HELOÍSA HELVÉCIA
EDITORA DO VITRINE
Recomeça a corrida
maluca às academias.
Como em toda véspera de verão, as salas de
musculação incham, as aulas de
bike bombam. E sobe o índice
de sarados machucados.
Ali, onde se busca saúde, são
fabricadas também - com cinturas de pilão e barrigas de tanquinho- contusões, dores,
doenças que incapacitam.
Não há estatística associando
uma artrose precoce ao abuso
de "leg press". Nem a mesa de
cirurgia de hoje à mesa romana
de ontem (aparelho em que a
vítima, de bruços, chuta o ar
com a barra de ferro nos tornozelos). Mas há ortopedistas, fisioterapeutas e professores de
olho nessas relações. Eles identificam uma epidemia de lesões
causadas pelo tipo de treino
praticado na maioria das 10 mil
academias do país (somadas
também as informais).
"As características genéticas
de cada um não são respeitadas
nesses treinos", diz a fisioterapeuta Mônica Gianotti, especializada em medicina do comportamento pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). "Os professores não sabem
identificar sinais patológicos
nem a má postura nos aparelhos. O resultado são mais distúrbios musculoesqueléticos."
O que a fisioterapeuta vê na
clínica o economista Rafael Biral sente na carne. Acostumado
a correr, jogar bola e passar
duas horas na academia, parou
tudo depois de uma lesão no
quadril, que se tornou crônica.
Não foi só o quadril. Antes,
Rafael, 29, já tinha rompido o
tendão do ombro por estresse,
quer dizer: não por trauma, e
sim pelo esforço feito num
mesmo lugar do corpo por longo período. Ou, em português
claro: pela violência repetida de
um exercício que ou era contra-indicado, ou feito errado.
A dor estava lá fazia tempo,
mas o economista seguia treinando. Até que operou. "Meu
ombro não ficou cem por cento. Fui o maior culpado."
Depois do castigo de dois
anos parado, Rafael diz ter descoberto uma fisioterapia "diferente" e outro jeito de se exercitar. "Mudei o estilo. Freqüentei academias grandes e pequenas. Em todas, a orientação era
ruim. São espaços da estética, a
saúde não é considerada."
É, academia não é mesmo
um "ambiente cuidador", comenta Alexandre Blass, atual
treinador de Rafael.
Mestre em esporte de alto
rendimento, Blass aponta a distância entre a universidade e o
comércio de fitness como uma
das causas dessas falhas: "A
complexidade da atividade física exige mais conhecimento.
Academias até têm médico, fisioterapeuta, educador. Mas
não integram essas áreas".
Integrado ao fisioterapeuta
Marcelo Semiatzh, Blass trabalha na preparação de quem corre, ou treina, e quer melhorar
seu desempenho sem elevar o
risco de lesão. A metodologia
da dupla é desenvolver a percepção e a coordenação da pessoa, reeducando sua postura.
Semiatzh diz que a faixa etária do público de academia vem
aumentando e que, se é bom
que mais gente saia do sedentarismo, nem todos estão preparados para tudo. Especializado
em reeducação postural, o fisioterapeuta diz que, em vez de
tanta puxação de ferro e aulas
"energéticas", o ideal seria treinar a pessoa a suportar o peso
do corpo e a elevar a eficiência
nos gestos do dia-a-dia.
Pesadelos de salto alto
Ao deixar a vida sedentária,
dez anos atrás, a empresária
Priscilla Todeschini, 39, partiu
para musculação, spinning e
esteira. "Aí entrei nessa de correr." Com a meta da maratona
de 2000 em Nova York, ela aumentou o ritmo. Teve contratura na panturrilha direita. Depois, rompeu o músculo sóleo,
na panturrilha esquerda. "Vivi
nove anos com dores incríveis.
Acordava como se tivesse dormido de salto alto." Também
teve fratura por estresse na
perna direita. "Hoje, com a
consciência que tenho, acho sala de musculação um terror.
Ninguém sabe que aparelho fazer, como sentar. A orientação
dada é generalizada."
A empresária, mesmo com
dores, não desistiu de correr.
Passou por equipes profissionais até conhecer, na academia,
um professor que fazia um trabalho específico em corrida e
pesquisava dor e prevenção de
lesão. "Aprendi a entender meu
corpo. Deixei de fazer uma série de exercícios, mas corro o
mesmo que antes. A diferença é
que não tenho dor nenhuma."
O treinador de Priscilla, Luiz
Fernando Alves, passou por sete academias. Formado em esporte e pós-graduado em biomecânica, fisiologia, traumatologia e reabilitação pela USP,
ele critica o sistema da avaliação pro forma, que impera:
"Não existe uma análise postural capaz de guiar a orientação
na esteira, bicicleta ou musculação. A avaliação física nunca
oferece informações para uma
conduta preventiva, que deve
ser observada em academias".
Para esse professor, cuja linha de trabalho é a correção
sistemática de movimentos e o
despertar da percepção do corpo, alguns simples ajustes biomecânicos, tanto nas aulas coletivas como nos treinos individuais, poderiam evitar dores.
"Mas o profissional de educação física não é preparado para
ler o corpo do aluno e vetar
exercícios que vão exacerbar os
desequilíbrios existentes", diz.
O que "pega" mais
Hoje, segundo Luiz Fernando, os cursos de atualização em
biomecânica ensinam qual
exercício "pega" mais o músculo "X" ou "Y". "Você aprende
que aquele movimento vai ativar mais o peitoral ou o glúteo,
mas a custo de quê? Preserva
articulação? Protege ligamentos? Nada disso é visto na faculdade. O disseminado, hoje, é o
que "pega" mais. Se está "pegando", está bom", ironiza.
O que "pegou" para o médico
infectologista Décio Diamente,
50, foi ombro. E joelho. Ele freqüentava academia de forma
intermitente, como a maioria
dos 5% de brasileiros matriculados. "Fazia, parava, fazia, parava. Parava por questões profissionais, ou por lesões", diz.
O médico começou por recomendação, para fortalecer clavícula e escápula. "Mas acabei
entrando no sistema massificado: máquinas, esteira. Quando
percebia, estava com dor." O
problema virou crônico. Teve
tendinite com bursite no ombro (inflamação no tendão com
a doença reumática que inflama as bursas, cavidades que
contêm o líquido sinovial).
"Doía muito e dói ainda."
Pior foi o joelho esquerdo,
que "abriu o bico" aos poucos.
Culminou com ruptura de menisco, neste ano. Operou em
maio e, desde então, faz fisioterapia e treinamento especial.
"Eu não associava as lesões
aos treinos. Mas, no caso do
joelho, estava na esteira quando senti uma dor aguda muito
forte. Até ali, não passava pela
cabeça que aquilo estivesse me
prejudicando. Aqueles aparelhos foram criados para o fisiculturismo, quando o objetivo
de gente como eu é, sim, ter definição muscular, mas sem pretensão de Mister Universo."
Hoje, Décio não treina sem supervisão. "Não adianta ficar
solto na academia. Eu não pedia ajuda. Erro meu."
Não buscar orientação na
atividade física "é o erro mais
comum", diz o ortopedista Rene Abdalla, co-autor do livro
"Lesões nos Esportes" e coordenador do Centro de Traumatologia Esportiva da Unifesp.
"Agora, todo mundo quer se recuperar rápido do inverno, e os
excessos no peso e na bike podem desencadear lesões." Ele
diz que o spinning responde
por mais de 50% das queixas
de dor em joelhos.
Outras fontes potenciais de
machucados são a esteira e as
aulas de body jump, segundo a
reumatologista Fernanda Lima, coordenadora do ambulatório de medicina esportiva e
reumatologia da USP. Mas até o
alongamento, que em geral é
visto como preventivo, pode
prejudicar se a postura certa
não for observada, lembra o
treinador Luiz Fernando Alves.
Então, qual a alternativa à
malhação camicase? "O aluno
deve buscar avaliação física séria e checar se a academia dá
suporte", diz Fernanda Lima.
O melhor é evitar o treino
massificado, diz a médica Laíra
Campello, especializada em
medicina esportiva pela Unifesp. "A pesquisa da academia
deve ir além de preço e localização. A pessoa deve checar se há
acompanhamento na evolução
do treino e qual a política de admissão de pessoal."
A falta de qualificação profissional "aumenta significativamente o risco de lesões", diz o
professor universitário de educação física Alfredo Cesar Antunes, doutorando pela Universidade Estadual de Campinas.
Autor de duas pesquisas sobre
o perfil de instrutores de academias, Antunes mostrou que a
maioria não possuía contrato
de trabalho e disputava mercado com não-graduados.
Outra conclusão de seu estudo é a de que o mercado valoriza a aparência e juventude do
instrutor, não a experiência e a
formação. "Muita ação precisa
ser feita tanto pelos cursos de
preparação quanto pelos conselhos de educação física", diz.
"Ainda existe muita informalidade em academias", concorda Claudio José Albuquerque e
Silva, médico especializado em
medicina esportiva e presidente da Acad (Associação Brasileira das Academias). "O ramo de
fitness é novo no país, tem menos de 20 anos. Nesse período,
não tem havido adequações da
graduação à realidade. Os currículos têm foco no passado."
Culpa da cebola
Mas, segundo o presidente
da Acad, "grande parte das lesões ocorre pela própria irregularidade dos clientes na frequência". Só 5% da população
freqüenta academias, na estimativa da associação. E é a minoria dessa minoria que mantém uma prática regular. "Existe um vai-e-volta imenso. Os
clientes querem ganhar massa
muscular e perder peso rápido,
não querem trabalho de longo
prazo. Aí vem o exagero."
Era mesmo exagerada, no
início da carreira, a corredora
Conceição de Maria Carvalho
Oliveira, 32, segundo lugar no
ranking de corrida de rua da
Confederação Brasileira de
Atletismo. "Não sabia meus limites, extrapolava." Antes de
cair nas mãos certas, ela diz que
colecionou "contusões sérias".
Mesmo não sendo fã de academia, a atleta a freqüentava, antes de provas: "Como não tinha
conhecimento, eu era uma dor
só, sofria com joelhos e lombar.
Queriam que eu virasse uma
mala de músculos". Hoje, diz
que sabe se policiar para não
passar da medida. "Descobri
um treino mais profundo e não
quis mais saber de academia."
O que não a livra -nem ninguém- de machucado. Sua primeira vitória do ano, duas semanas atrás, veio depois de 40
dias parada, o tempo de curar
uma fratura no pé esquerdo.
Aconteceu na feira: a campeã
deslizou numa casca de cebola.
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