São Paulo, terça-feira, 09 de novembro de 2010
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COISAS LOUCAS

MARION MINERBO - marion.minerbo@terra.com.br

Pecadoras da Unesp apedrejadas


A magreza, como antes a castidade, virou virtude, embora nenhuma delas tenha a ver com fazer o bem

O "RODEIO de gordas" nos deixou estarrecidos. Na competição entre alunos da Unesp, vencia quem "montasse uma gorda" por mais tempo. À primeira vista, trata-se de mais uma forma de bullying e de preconceito.
Mas há uma diferença importante entre ambos e essa forma grotesca de agressão. Aqui, está em jogo algo que remete aos tempos bíblicos, quando o adultério feminino era punido (em alguns países muçulmanos ainda é) com a morte por apedrejamento.
Em coautoria com o falecido psicanalista Fabio Herrmann, publiquei, em 1994, "Creme e Castigo: sobre a migração dos valores morais da sexualidade à comida". A alusão a "Crime e Castigo", de Dostoievski, não é jogo de palavras: o creme virou um crime de atentado ao pudor.
Até pouco tempo, o sexo era a principal fonte de sentimentos morais. A mulher devia zelar por sua honra. A castidade das jovens era uma virtude. A sexualidade excessiva e desregrada era moralmente condenável. Mulheres que se entregavam ao sexo eram indignas do respeito devido às outras.
Os tempos mudaram. O prazer sexual foi liberado.
Em compensação, "manter a forma" virou obrigação moral. Todo mundo "se cuida".
Exageramos na comida hoje, mas jejuamos amanhã.
Ao mesmo tempo, falamos de comida o tempo todo. Surgem restaurantes para todos os gostos, as lojas de iguarias parecem templos e degustamos pratos "de joelhos".
Ninguém quer engordar, não só por razões de saúde ou estéticas, mas também por razões morais.
Uma mulher magra contava às amigas igualmente magras ter assistido a uma cena indecorosa. Pegou fulana no flagra comendo um doce enorme, com recheio de creme e cobertura de brigadeiro.
"O pior", dizia ela, é que o fazia em público, sem pudor nem culpa. "E é gorda".
Cria-se continuamente a tentação de comer, pano de fundo sobre o qual se destaca a "virtude"de quem resiste.
A magreza, como antes a castidade, é vista como virtude, embora nenhuma das duas tenha qualquer relação com praticar o bem.
Inversamente, a gordura é interpretada como prova de que a mulher caiu em tentação, comeu demais, não se controlou, entregou-se compulsivamente à comida, enfim, transgrediu os atuais preceitos morais.
Nesse contexto, o funesto "rodeio de gordas" foi um apedrejamento. As alunas foram tratadas como pecadoras que não merecem respeito. No dia 28 de outubro, dois estudantes da Unesp atiraram a primeira pedra.


MARION MINERBO , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Neurose e Não-Neurose" (Casa do Psicólogo)


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