São Paulo, quinta-feira, 10 de maio de 2007
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Outras idéias - Anna Verônica Mautner

As origens do vício

Será que temos direito à felicidade ou o dever de sermos felizes, mesmo quando os eventos do dia-a-dia não nos propiciam isso? Se assim é, o que nos resta? Lançar mão de aditivos como remédios, drogas, jogos de azar? Ou então, que sugerem? Afinal, o que é viciar-se, tornar-se dependente, e que papel tem isso na nossa vida? A velha toada "Tornei-me um ébrio, pela vida busco esquecer aquela ingrata..." é pouco para explicar.
Desilusão é parte da questão, mas não a esgota. Desiludimo-nos todos uma ou outra vez. Nem todos nos viciamos. Por quê? O que levaria alguns ao uso dessa muleta e outros não? Será possível dizer que o vício é a vala comum dos que não conseguem esperar a felicidade chegar? Ou será o apoio dos que não sabem lidar com a vergonha de falhar? Ou dos que não sabem viver sem controlar seus estados de ânimo?
Alimento eu a vaga noção de que à droga se alia um tipo de pessoa que tem dificuldade de esperar o desejado. Não esqueço o papel da educação no treino para desejar o possível e esperar pelo difícil. Vejamos alguns casos. O cantor, o mágico, o orador e o músico praticamente têm acoplado o fazer ao aplauso. Já o cozinheiro, o costureiro, o estilista e o vitrinista têm de esperar entre o fazer, o terminar, o entregar e ser aprovado. O tempo entre fazer e ser aplaudido varia em diferentes ofícios.


[...] É entre aqueles que precisam de reconhecimento instantâneo que encontramos os drogados em potencial


É entre aqueles que, por temperamento ou por treinamento, precisam de reconhecimento instantâneo que encontramos, em maior número, os drogados em potencial. Uma droga garante sucesso instantâneo na procura de certo bem-estar. O drogado não precisa de ninguém, só de sua fonte de droga. Desaprende a se relacionar. A um chocólatra, basta um chocolate; para um cocainômano, uma carreirinha é garantia de alívio e exaltação; para um alcoólatra, um trago.
Um viciado se garante o poder -pífio, é bem verdade- sobre o seu estado de ânimo: controla o tempo e a qualidade da plenitude desejada. Mas, se sou cientista, romancista ou campeã de natação, acostumada a esperar meses e anos para a vitória, eu dificilmente vou me viciar em dado, coca, álcool etc. Que compensação pode qualquer um de nós garantir a um cocainômano que, com uma simples cheirada, chega lá, enquanto nós só temos a lhe oferecer anos de luta e síndrome de carência para, no final, seu prêmio se resumir a se tornar uma pessoa como qualquer outra, como eu e você, que sonhamos e esperamos?
Drogas leves fazem parte de festas em todas as culturas. Alguns goles em festa de Carnaval, Ano Novo e aniversário não são viciantes. É farra, é desligamento, é vida entre parênteses. A mesma substância, se estiver ao alcance de quem não agüenta esperar ou quer controlar seu acesso à felicidade, pode ser fatal. Afinal, uma bengala pode ser enfeite na dança de Fred Astaire e indispensável nas mãos de um homem com a perna machucada.

ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br


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