São Paulo, quinta-feira, 10 de maio de 2007
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Crianças

Quando as letras se embaralham

Mesmo atingindo muitas pessoas desde a infância, a dislexia continua sendo um distúrbio desconhecido para muitos pais e professores

FLÁVIA PEGORIN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A chegada das crianças à idade escolar é sempre uma comemoração em família. Mas um distúrbio que chega a atingir 15% da população mundial pode complicar a nova fase. A dislexia, infelizmente, costuma ser detectada apenas com o início da alfabetização. Por muito tempo, inclusive, essa deficiência foi confundida com desmotivação ou inteligência baixa. Tratavam-se crianças e jovens como burros, quando na verdade eles apenas processavam as informações de maneira diferente no cérebro -a causa da dislexia. O cérebro de uma pessoa disléxica é idêntico ao de outra sem o distúrbio. A diferença está nas conexões. A dislexia, que já se sabe surgir por forma hereditária, mesmo que vinda de um parente distante, "embaralha" as ligações cerebrais principalmente nas regiões responsáveis por controlar a leitura, a escrita e o poder de soletrar. Com essa área "desorganizada", a criança começa a demonstrar dificuldades já na pré-escola.
A primeira característica comum a ser notada é a dispersão. Meninos e meninas não conseguem manter o foco em um jogo e demoram mais a falar e a organizar a linguagem de modo geral. Aprender as rimas das musiquinhas do jardim-da-infância é incrivelmente difícil, assim como montar um simples quebra-cabeça. "Se não for observada rapidamente, logo a dislexia causa um desinteresse da criança por livros e mesmo por estudar, já que se torna extremamente trabalhoso para ela acompanhar os colegas", diz Maria Ângela Nogueira Nico, fonoaudióloga e psicopedagoga que trabalha junto à Associação Brasileira de Dislexia. O melhor é que uma equipe multidisciplinar identifique a dislexia. A avaliação abrangente (que inclusive deveria ser estendida a todos os estudantes do Brasil, o que não acontece) conjuga professores, fonoaudiólogos, psicólogos e médicos e abre condições para um acompanhamento mais eficiente das dificuldades após o diagnóstico, fazendo um direcionamento, então, às particularidades de cada indivíduo.
A Associação Brasileira de Dislexia recebe, a cada ano, cerca de 900 contatos em busca de mais informações e orientações sobre o transtorno. Em geral, as visitas se intensificam nos meses de outubro e novembro, quando muitos pais se dão conta de que o filho está com dificuldades e prestes a perder o ano. E só então atentam para a possibilidade de o problema ser a dislexia. Mas ensinar disléxicos a ler e a processar informações com mais eficiência é um processo de longo prazo e que exige paciência. Diferente da fala, que a criança acaba adquirindo pela convivência com outros, a leitura precisa ser ensinada -e aí aparece o problema. Utilizando métodos adequados de tratamento, muita atenção e carinho (pois crianças tendem a se sentir menosprezadas por portar o transtorno), a dislexia pode ser vencida.
Crianças disléxicas que receberam tratamento desde cedo superam o distúrbio e passam a se assemelhar àquelas que nunca tiveram problemas de aprendizado. Além disso, apresentam menor dificuldade ao aprender a ler, o que evita atrasos na escola, repetição de séries e até mesmo o desgosto pelo conhecimento. Giovana Alvarez Morales, 13, só foi diagnosticada disléxica aos 11 anos. Até lá, sofria por ter notas baixas e pelos rótulos de ter um aprendizado "lerdo". A mãe, Maria de Lurdes, foi quem juntou todos os fatos e reconheceu os sintomas da garota. "A escola não detectou a dislexia. Hoje, a Giovana vai à psicóloga para aceitar que tem o transtorno e conviver com isso e também à fonoaudióloga, para criar seus próprios dispositivos de reter a 'memória curta'", diz Maria de Lurdes. A memória recente é mesmo um problema para os disléxicos. Giovana, por exemplo, se esquecia de avisos comuns da sexta série, como uma prova oral para o dia seguinte. Assim, deixava de estudar e tirava notas ruins. "Conheci pais que se mortificavam por terem chegado a bater nos filhos achando que eles tinham falta de aplicação, sendo que se tratava de dislexia", conta Maria Ângela Nogueira Nico. Ela acredita que os testes para detectar dislexia deveriam ser obrigatórios nas escolas, já que a taxa de pessoas afetadas pelo distúrbio é grande.


"[...]A maioria dos tratamentos para dislexia enfatiza a assimilação de fonemas, o aumento do vocabulário, a melhoria da compreensão e a fluência na leitura"


A maioria dos tratamentos para dislexia enfatiza a assimilação de fonemas, o desenvolvimento do vocabulário, a melhoria da compreensão e a fluência na leitura. Esses métodos ajudam o disléxico a reconhecer sons, sílabas, palavras e frases -pois, para eles, cada termo lido acaba se parecendo com uma "nova palavra". É aconselhável que a criança disléxica leia bastante em voz alta para que possa ser corrigida no ato. Alguns estudos sugerem que um tratamento adequado e ministrado bem cedo pode corrigir as falhas nas cone-xões cerebrais a ponto de elas se tornarem mínimas -isso no caso de dislexia leve, mas, mesmo para portadores de grau médio ou severo, um tratamento direcionado pode diminuir os sintomas. Como os disléxicos costumam ser muito inteligentes, tendem a ativar outras áreas do cérebro para compensar suas perdas de memória e concentração.
Muitos especialistas sugerem, inclusive, que pessoas disléxicas, por serem força-das a pensar e aprender de forma diferente, se tornam mais criativas e têm idéias inovadoras que superam as de não-disléxicos. Pode não ser determinante, mas vale lembrar que algumas personalidades que se tornaram célebres também eram portadoras desse distúrbio, entre elas o desenhista Walt Disney, a escritora Agatha Christie, o inventor Thomas Edison e o ator Tom Cruise (que diz ter sofrido muito no início da carreira para memorizar seus roteiros).
Mesmo que a dislexia não seja curada, conviver com ela é necessário. Os portadores têm, inclusive, direitos assegurados por lei. Crianças com dislexia podem, por exemplo, pedir para refazer provas orais, ter uma hora a mais nas provas escritas e usar livremente uma calculadora. Giovana, muito discreta, prefere usar um lápis com a tabuada impressa. Ela teme ser tachada pejorativamente, como se tivesse uma doença contagiosa. Apenas quando conhece melhor a pessoa ela vence o cuidado de disfarçar a dislexia, o transtorno tão comum e tão desconhecido.


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