São Paulo, quinta-feira, 10 de maio de 2007
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SAÚDE

Menos invasivos

Medicamentos e mudanças de hábito têm mesmo efeito da angioplastia no tratamento de problemas cardiovasculares, indicam novos estudos

AMARÍLIS LAGE
da reportagem local

IARA BIDERMAN
colaboração para a Folha

I nserir um balão na artéria entupida, inflá-lo para que ele destrua as placas de gordura e deixar no local um stent -pequena "rede" que impede a artéria de obstruir novamente. Assim funciona, grosso modo, a angioplastia coronária -técnica utilizada em larga escala no tratamento de problemas cardiovasculares e agora no centro de dois dos principais estudos recentes sobre cardiologia. O primeiro traz uma boa notícia: o número de pessoas que morreram no hospital, após sofrer um ataque cardíaco, caiu pela metade ao longo dos últimos dez anos. Na base dessa mudança, o "Grace" (registro global de eventos coronários agudos, na sigla em inglês) cita o aumento no número de pessoas que se submeteram a procedimentos como a angioplastia -uma medida fundamental durante um infarto, mas opcional em pacientes com quadro estável.
É justamente no segundo caso que a técnica está sendo questionada. Divulgado em março, no congresso do American College of Cardiology, o estudo "Courage" acompanhou por cinco anos 2.287 pessoas com doença arterial coronária crônica. Todas receberam um tratamento clínico otimizado, o que significa medicação intensiva para fatores de risco como hipertensão e diabetes e adoção de hábitos saudáveis. Parte delas também foi submetida à angioplastia. Ao fim de cinco anos, os dois grupos foram comparados. O índice de sobrevivência, assim como o número de pessoas que haviam tido infarto no período, era o mesmo. O resultado levantou uma pergunta: a angioplastia faz diferença?
Uma pesquisa do Incor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas de São Paulo) obteve resultados parecidos. O trabalho mostrou que, após um ano de acompanhamento, o índice de mortalidade entre os pacientes que haviam feito angioplastia ou uma cirurgia era de 5% e 4%, respectivamente. No grupo de tratamento clínico, foi de 2%.

Polêmica
Para o cardiologista Jairo Lins Borges, do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, "o 'Courage' representa uma mudança de paradigmas. Nos Estados Unidos, um milhão de angioplastias foram feitas em 2004. A maior parte dos procedimentos foi realizada em pessoas com um quadro estável. Precisamos mesmo fazer angioplastia em tanta gente?". Para Carlos Alberto Pastore, cardiologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, de São Paulo, a resposta é clara: "Houve exagero, tanto no exterior quanto aqui". Já Alvaro Avezum, coordenador do "Grace" no Brasil, não vê excesso na prática. O estudo, realizado em 14 países, mostrou que 10% das pessoas que foram hospitalizadas devido a infarto, em 2005, já haviam feito angioplastia. Em 2000, o índice era de 6%. "Não vejo excesso nenhum nisso."

Desvantagens
Uma desvantagem do procedimento em pacientes estáveis -que, segundo Borges, representam até 90% dos candidatos à angioplastia coronária- é a possibilidade de reobstrução da artéria em poucos meses. Isso ocorre em 30% dos casos de angioplastia simples e em 10% dos casos em que o procedimento inclui a colocação de um stent. "A adoção do stent farmacológico resolveu isso, já que libera substâncias que impedem a formação de novas placas de gordura. Mas aumentou a chance de trombose", diz Borges. Para evitar a coagulação do sangue, é preciso usar uma medicação cara, que aumenta o risco de sangramentos. "Às vezes, a pessoa está com uma pequena lesão, e a angioplastia desestabiliza isso. Tem gente que coloca três, quatro stents. É muita agressão", diz Pastore.
O empresário José Carlos Nunes da Silva, 61, três infartos, duas angioplastias, colocou quatro stents após seu último infarto, no ano passado. Na primeira vez, aos 45 anos, fez uma angioplastia, sem implante de stents, e saiu logo do hospital. Depois do evento, não se preocupou com o tratamento. "Comia de tudo, às vezes esquecia de tomar o remédio." A falta de cuidados resultou em um segundo infarto, em 1991. Na ocasião, fez apenas cateterismo (introdução de cateter até o coração para exame visual do órgão e desobstrução de artérias e válvulas).
Recuperado, Silva retomou as atividades e a costumeira falta de cuidados, que durou até a última internação, em 2006. Só saiu do hospital após oito dias e com os quatro stents. "Foi um susto. Agora aprendi, estou me cuidando." Segundo Borges, o paciente deve ser avisado dos riscos ao optar por fazer ou não a angioplastia. "O médico deve expor ao paciente as vantagens e desvantagens de cada tratamento. Imagine uma pessoa que esteja estável e só sinta dor no peito ao subir uma ladeira. Se ela fizer o tratamento clínico otimizado, a chance de sobrevivência é a mesma."

Prós
Mas a angioplastia tem a seu favor três palavras "mágicas": alívio da dor. Pessoas com doenças coronarianas crônicas costumam sentir muita dor no peito, além de cansaço. "O estudo mostrou que a angioplastia não aumenta a sobrevida [em relação ao tratamento clínico]. Mas ela melhora os sintomas, como a dor no peito. Portanto, melhora a qualidade de vida", diz Marcelo Bertolami, presidente do departamento de aterosclerose da SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia) e diretor clínico do Dante Pazzanese. Para ele, o tratamento clínico e a angioplastia não são excludentes. "A questão é ter bons critérios para selecionar quem irá realmente se beneficiar com a intervenção." Além disso, seguir o tratamento só com medicamentos é considerado inviável por muitos especialistas.
Eulógio Martinez, diretor do serviço de hemodinâmica e cardiologia intervencionista do Incor, diz ser difícil oferecer o tratamento clínico como alternativa à angioplastia para a população em geral. Isso porque a aderência ao tratamento clínico é baixa e não pode ser tão bem controlada como a acompanhada por um estudo. "Não estamos em condições de oferecer esse tratamento ótimo às pessoas." Para Martinez, a angioplastia é uma excelente opção inclusive para pacientes com o quadro estável. "Se as placas nas artérias estão estabilizadas mas há obstruções significativas, a área de risco é muito ampla e há possibilidade de revascularização, a angioplastia é uma opção consagrada, protetora e que proporciona alívio dos sintomas." Ricardo Pavanello, supervisor de cardiologia do HCor (Hospital do Coração da Associação do Sanatório Sírio), não acha que haja um excesso de angioplastias. "Muito menos no Brasil. Aqui, ainda é pequeno o número de hospitais capacitados a realizar essas intervenções 24 horas por dia".
Mas, quando não há emergência, há médicos que preferem se apoiar em estudos como o feito pelo Incor e o norte-americano "Courage". Para Francisco Fonseca, professor livre-docente de cardiologia da Unifesp (Universidade Estadual de São Paulo), eles dão suporte para a maior utilização de tratamentos clínicos -não invasivos e mais baratos do que a angioplastia. "São estudos sérios, que nos deixam mais confortáveis para tratar clinicamente pacientes com quadro estável. Antes, se o paciente apresentava sintomas e os testes acusavam a doença, a preferência era encaminhar para a angioplastia, pois se imaginava que ela prevenia mais mortes. O grande recado é que não temos mais de correr tanto." "A medicação melhorou muito. Mas não são todos que querem se submeter a esse processo. Pacientes do coração costumam ser extremamente ansiosos, não conseguem fazer um tratamento com calma", reconhece Pastore. A angioplastia, afirma, pode deixar esses pacientes mais seguros.

Banalização
O fato é que o desenvolvimento da técnica de angioplastia e implante de stents de certa forma "banalizou o evento coronário", diz Pavanello. Comparada à cirurgia do coração, é um refresco. "A internação é de dois dias, não há trauma cirúrgico e a reabilitação é muito mais rápida -após uma semana já é possível voltar ao trabalho", explica. O problema é que a solução rápida, aliada ao desaparecimento de sintomas, como dor e falta de fôlego, faz muita gente abandonar os tratamentos. Foi o que aconteceu com Luiz Markesz, 81, que se submeteu a uma angioplastia há quatro anos. "Durante seis meses, eu senti uma dor muito forte no peito e um peso muito grande ao respirar." A recuperação após a angioplastia, conta, foi rápida: após um dia na Unidade de Terapia Intensiva e quatro ou cinco dias de internação, Markesz voltou à vida normal. "A dor desapareceu totalmente. Comecei a tomar remédios em quantidade e freqüência menores."
Mas não começou a praticar atividades físicas, como o médico recomendou. "Prefiro aproveitar o tempo fazendo o que eu gosto", diz ele, que dedica oito horas do seu dia a fazer esculturas. O perigo, alerta Pastore, é que esse descuido leve a novos problemas de saúde. "Pacientes do coração tendem a ser pessoas muito ansiosas, que vivem nessa correria, fumam, não fazem exercícios. Quando o médico dá uma solução que, teoricamente, resolveu quase tudo de uma hora para a outra, é comum ele não se cuidar tanto. Na verdade, muita coisa depende da mudança de vida. A doença coronariana é intimamente ligada ao estresse."


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