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Encomende seu sonho
Não é só na ficção que é possível modificar os roteiros dos pesadelos. Técnicas para dormir com os anjos não faltam
ANNETTE SCHWARTSMAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
No novo filme "A Origem",
o personagem de Leonardo
Di Caprio é contratado para
invadir sonhos do herdeiro
de uma corporação e implantar ideias em sua mente.
Com efeitos especiais dignos dos piores pesadelos
-como Paris dobrando-se
sobre si mesma e explodindo
em pedacinhos-, essa ficção
científica, no entanto, não
está tão longe da realidade.
Uma área da neurologia
argumenta que um indivíduo
pode dirigir seus próprios sonhos de forma limitada.
Alguém que tenha um pesadelo recorrente pode
aprender a substituir seu
script aterrorizante por uma
versão mais amena.
Bons ou ruins, os sonhos
são misturas criadas pelo inconsciente que processa, ordena e guarda emoções do
dia, lembranças reprimidas e
desejos ocultos.
"Se fossem mera atividade
aleatória dos neurônios no
córtex cerebral, não seria
possível ter sonhos iguais
mais de uma vez. Isso prova,
como Freud disse, que eles
têm significado e são motivados por experiências vividas
durante a vigília", diz o neurocientista Sidarta Ribeiro,
39, chefe de laboratório do
Instituto Internacional de
Neurociência de Natal e um
dos principais pesquisadores
do assunto no Brasil.
"Nós levamos os problemas para dormir e os trabalhamos durante a noite", diz
Rosalind Cartwright, professora de neurociência da Universidade Rush do Centro
Médico de Chicago, que há
50 anos estuda o sono.
Em seu livro "The Twenty-Four Hour Mind" ("a mente
24 horas"), ela explica que o
cérebro registra as questões
emocionais inacabadas do
dia e, durante o sono REM
(em que os olhos se movem
rapidamente e ocorrem os sonhos), as mistura com memórias antigas relacionadas.
"O sonho serve para depurar a emoção negativa recente. É como se você limpasse o
seu HD para sofrer menos durante o dia", compara o neurologista Flávio Alóe, 50, do
Centro Interdepartamental
para os Estudos do Sono do
Hospital das Clínicas de SP.
Já os pesadelos, diz Alóe,
são sonhos que provocam
sensação de impotência
diante de ameaças de sobrevivência, segurança pessoal
ou autoestima.
"Com sequências temporais semelhantes à realidade,
eles se confundem com esta,
tornam-se perturbadores e
terminam com o despertar
consciente e com emoções
negativas como ansiedade,
medo, raiva, vergonha e nojo, que permanecem na memória. Também podem ser
acompanhados de taquicardia, respiração ofegante, sudorese ou ereção", define o
especialista.
Alóe diz ainda que noites
cortadas por pesadelos prejudicam o sono REM, essencial para regular funções como criatividade e memória.
Como pesadelos devem
ser levados a sério, uma providência é achar as causas.
"É preciso saber se têm causas emocionais, se são efeito
de remédios, de transtorno
neurológico", diz Luciano Ribeiro Pinto Jr., neurologista
do Instituto do Sono e pesquisador do sono na Unifesp.
Há tratamentos farmacológicos e terapêuticos. Em
um desses, a dessensibilização "in vivo", a pessoa é exposta, acordada, ao que a
atormenta no sono -como
ratos. O medo passa.
No sonho lúcido, a pessoa
aprende a ficar consciente de
que está sonhando. Para alguns, a habilidade é natural.
"Na ioga tibetana, pratica-se sonho lúcido no sono e na
vigília", diz Sidarta Ribeiro.
No sonho lúcido, o indivíduo tem consciência de estar
sonhando, raciocina. Ele se
comunica com o meio externo por movimentos oculares
ou do polegar, e decide o
conteúdo do enredo.
Outra técnica é a incubação do sonho, pesquisada
pela primeira vez nos anos
1990 por Deirdre Barrett, da
Harvard Medical School.
Segundo a psicóloga, o paciente deve escrever seu problema em uma frase curta e
colocar a anotação perto da
cama. Antes de dormir, revisa o problema e, deitado, visualiza a questão. Enquanto
cai no sono, deve dizer a si
mesmo que quer sonhar com
o problema. Ao acordar, deve
ficar deitado, observando se
há resquícios de sonho, e
anotar o que lembrar.
Uma terapia semelhante é
a de ensaio da imagem, desenvolvida por Barry Krakow, do Centro Maimonides
de Artes e Ciência do Sono,
no Novo México (EUA).
Consiste em, no estado de
vigília, relembrar o pesadelo
em detalhes e escrevê-lo mudando o seu final para um
agradável, ou até um sonho
completamente diferente.
Depois, a pessoa deve ensaiar a nova versão uma vez
por dia, por 20 minutos, durante duas semanas.
Shelby Freedman Harris,
diretora de medicina comportamental do sono do
Montefiore Medical Center,
em Nova York, aplica o método e conta o caso de uma mulher que sonhava estar cercada por tubarões. Ela imaginou que eles fossem golfinhos: os pesadelos sumiram.
Outro jovem que tinha pesadelos de estar sendo seguido transformou o perseguidor em chocolate e o comeu.
Alguns analistas veem
problemas em mudar o conteúdo dos pesadelos. Argumentam que eles enviam
mensagens cruciais à mente.
"A riqueza dos sonhos e
pesadelos está no fato de nos
trazerem conteúdos do inconsciente. A diferença entre
os dois é gostarmos ou não
desses "recados" que, uma
vez compreendidos, param
de nos assombrar", diz a psicanalista Lucia Rosenberg.
"Acho uma pretensão querer mandar no inconsciente
que, por definição, é algo que
não se controla", conclui.
Para psicanalista lacaniana Fani Hisgail, autora de "A
Ciência dos Sonhos, um Século de Interpretação Psicanalítica" (Unimarco), há uma
longa estrada a percorrer
"entre o sonho contado, que
é o material trabalhado em
terapia cognitiva, e o sonho
sonhado, que guarda elementos recalcados".
Do ponto de vista do sintoma, essas terapias substituem seis por meia dúzia, diz
Fani. "Cria-se uma ficção de
bem-estar, mas o sujeito continua desconhecendo o real
motivo que o angustia."
Já Sidarta Ribeiro não vê
problemas em apaziguar pesadelos às vezes. "O inconsciente é robusto, não será
afetado. As mensagens continuarão a chegar. O difícil não
é recebê-las, mas compreendê-las, o que é raro", retruca.
As pesquisas da neurofisiologia sobre sonhos, iniciadas nos anos 1950, engatinham. Mas têm futuro. "Já temos a medicina do sono, um
dia teremos a medicina dos
sonhos", diz Luciano Ribeiro
Pinto Jr. Não custa sonhar.
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