|
Próximo Texto | Índice
Outras Ideias - Michael Kepp
Uma curiosa cumplicidade
[...] COM UM SORRISO AMARELO, OFERECI-LHE
O VALOR QUE ELE HAVIA COBRADO INICIALMENTE SE ELE ME DEIXASSE
USAR SUA CALÇA
|
Taxistas, que estão entre meus intérpretes
desta cultura, já me
confidenciaram de fatos sobre suas famílias e amantes a outros sobre seus passados e preconceitos. Devido ao
meu sotaque, o papo geralmente começa com "O senhor é de
onde?". Mas meu momento
mais inesquecível em um táxi
teve um início bem diferente.
Tive que ir à polícia rodoviária nos arredores do Rio para
pegar o boletim de ocorrência
exigido pela seguradora depois
que um acidente destruiu o
meu carro. Mas o taxista que
chamei queria me cobrar uma
tarifa irrazoável, que declinei.
A cooperativa de táxis que
chamei depois me deu um preço melhor, mas enviou o mesmo taxista que me cobrou a tarifa recusada. Se tivesse notado
que o carro era dessa cooperativa antes, teria ligado para outra
para evitar um conflito.
Nosso duelo começou quando me sentei no banco de trás e
ele me acusou de passar-lhe a
perna. Dei-lhe uma aula sobre
comparação de preços e sugeri
ligar para outra cooperativa.
Ele grunhiu -o último som que
fez até chegarmos à polícia rodoviária uma hora depois.
A polícia ficava em um bosque isolado, longe da rodoviária. O guarda alertou: "Não pode bermuda, só calça", como se
programado para poupar palavras. Argumentar com esse robô não adiantou, forçando-me
a apresentar meu caso para o
taxista, estacionado ali perto.
Com um sorriso amarelo e
uma dose de desespero na voz,
ofereci-lhe o valor que ele havia
cobrado inicialmente se ele me
deixasse usar sua calça. Ele não
era do tipo bom samaritano, e
eu não estava entre seus favoritos. Mas a regra sobre o traje o
irritava também e ele aceitou a
oferta. Talvez as cumplicidades
necessárias para driblar a "burrocracia" aqui expliquem a origem das expressões "dar um
jeito", "quebrar um galho" e
"jogo de cintura".
No banheiro, a calça dele (tamanho P) me cabia (G) como
uma camisa-de-força. Pior: o
zíper não fechava. E meu hábito de não usar cueca -cuja função eu questiono- me deixou
com quase tudo ao ar livre. Então, coloquei a camisa para fora. O taxista, constrangido com
meu estilo "descuecado", recusou-se a vestir -e até mesmo a
tocar- minha bermuda. Preferiu esperar minha volta em sua
sedosa cueca samba-canção,
estampada com mulheres voluptuosas em poses sugestivas.
As sobrancelhas do guarda
saltaram quando ele me viu
passar como um pato por ele,
tentando evitar o estouro da
costura. Depois de pegar o boletim de ocorrência e de voltar
ao banheiro, espremi-me para
sair da calça, e o taxista balançou a cabeça, como se dissesse:
"Ela nunca será a mesma".
A volta ao Rio, mais animada
do que a ida, começou com "O
senhor é de onde?". Ele perguntou o que eu achava de
Bush, e eu perguntei sobre o
trabalho dele, que ele disse ser
tão imprevisível quanto seus
passageiros. "É uma surpresa
quando alguém senta na frente", falou. "Ou quando alguém
te oferece dinheiro para tirar a
calça", tive vontade de dizer.
Mas resisti à tentação.
MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano
radicado há 26 anos no Brasil, é autor do livro de
crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e
Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br
mkepp@terra.com.br
Próximo Texto: Pergunte Aqui Índice
|