São Paulo, quinta-feira, 11 de junho de 2009
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Outras Ideias - Michael Kepp

Uma curiosa cumplicidade



[...] COM UM SORRISO AMARELO, OFERECI-LHE O VALOR QUE ELE HAVIA COBRADO INICIALMENTE SE ELE ME DEIXASSE USAR SUA CALÇA

Taxistas, que estão entre meus intérpretes desta cultura, já me confidenciaram de fatos sobre suas famílias e amantes a outros sobre seus passados e preconceitos. Devido ao meu sotaque, o papo geralmente começa com "O senhor é de onde?". Mas meu momento mais inesquecível em um táxi teve um início bem diferente.
Tive que ir à polícia rodoviária nos arredores do Rio para pegar o boletim de ocorrência exigido pela seguradora depois que um acidente destruiu o meu carro. Mas o taxista que chamei queria me cobrar uma tarifa irrazoável, que declinei.
A cooperativa de táxis que chamei depois me deu um preço melhor, mas enviou o mesmo taxista que me cobrou a tarifa recusada. Se tivesse notado que o carro era dessa cooperativa antes, teria ligado para outra para evitar um conflito.
Nosso duelo começou quando me sentei no banco de trás e ele me acusou de passar-lhe a perna. Dei-lhe uma aula sobre comparação de preços e sugeri ligar para outra cooperativa.
Ele grunhiu -o último som que fez até chegarmos à polícia rodoviária uma hora depois.
A polícia ficava em um bosque isolado, longe da rodoviária. O guarda alertou: "Não pode bermuda, só calça", como se programado para poupar palavras. Argumentar com esse robô não adiantou, forçando-me a apresentar meu caso para o taxista, estacionado ali perto.
Com um sorriso amarelo e uma dose de desespero na voz, ofereci-lhe o valor que ele havia cobrado inicialmente se ele me deixasse usar sua calça. Ele não era do tipo bom samaritano, e eu não estava entre seus favoritos. Mas a regra sobre o traje o irritava também e ele aceitou a oferta. Talvez as cumplicidades necessárias para driblar a "burrocracia" aqui expliquem a origem das expressões "dar um jeito", "quebrar um galho" e "jogo de cintura".
No banheiro, a calça dele (tamanho P) me cabia (G) como uma camisa-de-força. Pior: o zíper não fechava. E meu hábito de não usar cueca -cuja função eu questiono- me deixou com quase tudo ao ar livre. Então, coloquei a camisa para fora. O taxista, constrangido com meu estilo "descuecado", recusou-se a vestir -e até mesmo a tocar- minha bermuda. Preferiu esperar minha volta em sua sedosa cueca samba-canção, estampada com mulheres voluptuosas em poses sugestivas.
As sobrancelhas do guarda saltaram quando ele me viu passar como um pato por ele, tentando evitar o estouro da costura. Depois de pegar o boletim de ocorrência e de voltar ao banheiro, espremi-me para sair da calça, e o taxista balançou a cabeça, como se dissesse: "Ela nunca será a mesma".
A volta ao Rio, mais animada do que a ida, começou com "O senhor é de onde?". Ele perguntou o que eu achava de Bush, e eu perguntei sobre o trabalho dele, que ele disse ser tão imprevisível quanto seus passageiros. "É uma surpresa quando alguém senta na frente", falou. "Ou quando alguém te oferece dinheiro para tirar a calça", tive vontade de dizer.
Mas resisti à tentação.


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 26 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br
mkepp@terra.com.br


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